Quito no século XIX. Pintura de Rafael Salas. Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em 07/12/21.
Nota sobre o documento
Autoria e sentido do documento
Atribuído a Simón Bolívar em razão de estudos comparados de estilo, entre outros, efetuados sobre o texto. Foi publicado em um jornal equatoriano, entre os meses de abril e junho de 1829. À época, o Libertador se encontrava no Equador reprimindo uma invasão peruana em Guayaquil.
Este escrito de Bolívar, de modo especial, reporta a diversas possibilidades ou ângulos de análise. Entre outros, a visão do Libertador sobre a fase inicial do caudilhismo pós-independência da América hispânica que, diga-se de passagem, foi excessivamente traumática e conflitiva.
O autor apresentou um denso painel dos mais relevantes acontecimentos políticos verificados na América espanhola de então. Ressaltou a situação anárquica e caótica em que as jovens repúblicas hispano-americanas viviam, e fez um apelo angustiado pela necessária e urgente correção de rumos.
A posição do texto na trajetória do pensamento político de Bolívar
Na minha percepção, o texto apresentado identifica um momento emblemático, demarcatório da trajetória do pensamento de Simón Bolívar. A desilusão diante da realidade política e a agonia em face do agravamento de sua enfermidade, que o levou a morte no ano seguinte.
É pertinente examinar este documento em conexão com dois outros textos, também de sua autoria: “Carta de Jamaica” [1815] e “Discurso no Congresso de Angostura” [1819].
A análise destes três escritos permite a compreensão de pontos essenciais. E, na linha sequencial do tempo, são complementares, digamos assim, da trajetória do pensamento político do Libertador.
Demonstro o meu ponto de vista, apresentando um pequeno fragmento de cada um dos três textos, com o propósito de fornecer elementos para reflexão e análise.
Carta de Jamaica, 1815
“Quando as águias francesas respeitaram apenas os muros da cidade de Cádiz e, com seu voo, levaram de roldão os frágeis governos da península, aí então nos vimos na orfandade. Antes já havíamos sido entregues à mercê de um usurpador estrangeiro; depois, lisonjeados com a justiça que nos era devida e com esperanças atraentes, sempre burladas; por último, incertos sobre nosso destino e futuro e ameaçados pela anarquia, por ausência de um governo legítimo, justo e liberal, precipitamo-nos no caos da revolução. No primeiro momento cuidou-se apenas de estabelecer a segurança interior contra os inimigos que se encontravam entre nós. A seguir providenciou-se a segurança exterior; erigiram-se autoridades que substituíssem as que acabávamos de depor e se encarregassem de dirigir a nossa revolução e de aproveitar a conjuntura feliz em que fosse possível estabelecer um governo constitucional, digno do presente século e adequado à nossa situação”. (Carta de Jamaica, [1815]. In: BELLOTTO, Manoel Lelo; CORRÊA, Anna Maria Martínez (orgs.). Simón Bolívar. São Paulo: Editora Ática, 1983, p. 74-90. Fragmento acima p. 82.)
Old harbour market, Ponsie’s Tavern, Jamaica, 1808, William Berryman. Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em: 07/12/2021.
Bolívar escreveu a “Carta de Jamaica” quando estava refugiado naquela ilha após ter sido derrotado pelos peninsulares em Caracas. A derrota dos patriotas frustrou, naquele momento, a esperança de se concretizar a independência da Venezuela.
No documento, abordou as vitórias e as derrotas de ambos os lados, na disputa entre a colônia e a metrópole; e, deixou clara a sua esperança na vitória, em decorrência da fragilidade da Espanha. Comentou a omissão da Europa e dos Estados Unidos face à revolução na Hispano-América.
Discorreu sobre a ocupação da Espanha pelas tropas de Napoleão Bonaparte, mencionando que o fato fez órfã a Hispano-América; e registrou a sua vontade de vê-la como uma grande nação republicana, a despeito das lutas intestinas que já se esboçavam.
Discurso no Congresso de Angostura, 1819
“Legisladores! Deposito em vossas mãos o comando supremo da Venezuela. Vosso é agora o augusto dever de vos consagrar à felicidade da república; em vossas mãos está a balança de nossos destinos, a medida de nossa glória – elas selarão os decretos que assegurem nossa liberdade. Neste momento, o chefe supremo da república não é mais do que um simples cidadão e assim quer permanecer até a morte. Servirei, entretanto, na carreira das armas, enquanto haja inimigos na Venezuela. A pátria tem uma multidão de filhos beneméritos capazes de dirigi-la: talentos, virtudes, experiências e tudo quanto se requer para comandar homens livres, são o patrimônio de muitos dos que aqui representam o povo e, fora deste soberano corpo, encontram-se cidadãos que em todas as épocas têm demostrado valor para enfrentar os perigos, prudência para evitá-los e a arte em fim de governar-se e de governar os outros. Estes ilustres varões merecerão, sem dúvida, os sufrágios do Congresso e se encarregarão do governo que tão cordial e sinceramente acabo de renunciar para sempre”. (Discurso pronunciado por ocasião da instalação do Congresso de Angostura, [1819]. In: BELLOTTO, Manoel Lelo; CORRÊA, Anna Maria Martínez. Op. cit., p. 115-136. Fragmento acima p. 116.)
Simón Bolívar discursa no Congresso de Angostura. Pintura de Tito Salas, feita no ano de 1941. Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em: 07/12/2021.
Neste texto, Bolívar valorizou a atuação do poder legislativo. Renunciou ao poder executivo da Venezuela para se dedicar, tão somente, à carreira das armas, na defesa e preservação da independência. Enfatizou, ainda, que a democracia pressupõe eleições periódicas.
Efetuou um acurado exame da realidade, onde defendeu o ponto de vista de que as instituições a serem criadas então, na república nascente, estivessem conectadas às possibilidades e necessidades da sociedade. Que não se importassem modelos institucionais de outras terras.
Apresentou um projeto de constituição fundado no Direito Natural, que levava em conta a composição étnica da sociedade; a perfeita igualdade política dos cidadãos; o governo republicano como estrutura da sociedade política; o equilíbrio entre o corpo político e o corpo social; a consolidação da liberdade social; e, finalmente, a limitação do sistema repressivo do Estado.
O discurso, na verdade, fixou os fundamentos para a consolidação da Grã-Colômbia por meio do mencionado projeto de constituição nele inserido que, também levava em conta a difusão da educação, o fim da escravidão, a implementação da justiça social e a livre determinação dos cidadãos.
Una mirada sobre la América Española, 1829
“Esta es, americanos, nuestra deplorable situación. Si no la variamos, mejor es la muerte: todo es mejor que una relucha indefinible, cuya indignidad parece acrecer por la violencia del movimiento y la prolongación del tiempo. No lo dudemos: el mal se multiplica por momentos, amenazándonos con una completa destrucción. Los tumultos populares, los alzamientos de la fuerza armada, nos obligarán al fin a detestar los mismos principios constitutivos de la vida política. Hemos perdido las garantías individuales, cuando por obtenerlas perfectas habíamos sacrificado nuestra sangre y lo más precioso de lo que poseíamos antes de la guerra: y si volvemos la vista a aquel tiempo, ¿quién negará que eran más respetados nuestros derechos? Nunca tan desgraciados como lo somos al presente. Gozábamos entonces de bienes positivos, de bienes sensibles: entre tanto que en el día la ilusión se alimenta de quimeras; la esperanza, de lo futuro; atormentándose siempre el desengaño con realidades acerbas.” (Una mirada sobre la América Española, [1829] In: LECUNA, Vicente. (org.). Simón Bolívar: obras completas, vol. III, La Habana: Editorial Lex, 1950, p. 841-847. Fragmento acima, p. 846.)
O texto, objeto deste post, inicia-se com o exame da realidade argentina. No conjunto, a gravidade da situação se revela por meio de distintas considerações: revolução anárquica com fuzilamentos e perseguições; desuso do equilíbrio e da moderação; descompasso entre o Direito Natural e o sistema político.
Na mesma linha de raciocínio, continua: cada província dirige a si mesma; concidadãos lutam entre si; ignorância dos deveres e dos direitos; eleições vinculadas a tumultos e intrigas; força e suborno regendo as decisões; magistratura fundada na corrupção; administrações desacreditadas; poder legislativo desonrado.
Ressalvadas, naturalmente, as especificidades de cada república, a realidade argentina espelha a realidade da América espanhola: por todas as partes, as eleições são fraudadas; a sucessão dos cargos públicos não se faz em conformidade com as leis; e, em todas as repúblicas ocorre a apropriação indevida do tesouro público.
E prossegue: a anarquia está presente por toda a geografia hispano-americana; a deposição das autoridades legítimas é uma constante; as províncias insurgem contra o governo central, ensejando guerras civis; a fragmentação territorial está sob ameaças frequentes; as ambições individuais, as pilhagens e as usurpações crescem sistematicamente.
Na sequência, Bolívar responsabiliza, nominalmente, os infratores e não poupa generais e chefes políticos pelos desmandos.
Finalmente, menciona a necessidade de se construir governos estáveis e de se distanciar da anarquia, para que a Hispano-América possa obter o respeito da comunidade internacional.
Informações adicionais ao texto
Com o propósito de facilitar a análise pelos iniciantes, mantive as informações adicionais entre colchetes – como esclarecimentos de termos fora de uso, a anteposição dos primeiros nomes às pessoas citadas apenas pelos seus sobrenomes e as balizas cronológicas, data de nascimento e morte de personagens – que se encontram na publicação eletrônica citada na “Referência bibliográfica do texto documental”.
Algumas referências para análise da fonte histórica
BELLOTTO, Manoel Lelo; CORRÊA, Anna Maria Martinez. (orgs.). Simón Bolívar. São Paulo: Editora Ática, 1983.
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Autor: Prof. Dr. Dinair Andrade da Silva
O texto documental foi transcrito de LECUNA, Vicente. (org.). Simón Bolívar: obras completas, vol. III, La Habana: Editorial Lex, 1950, p. 841-847.
O mencionado documento, publicado por Vicente Lecuna, pode também ser encontrado em https://sites.google.com/site/grancol1819/docs/18290404. Fonte: Manuel Pérez Vila (Compilador/Editor). Doctrina del Libertador. Documento 90, p. 279-287. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985.
Como citar este post: SILVA, Dinair Andrade da. Nota sobre o documento: Una mirada sobre la América Española, 1829. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/una-mirada-sobre-la-america-espanola-1829/. Publicado em: 14/12/2021. Acesso: [informar a data de acesso].
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