Apoiadores do movimento dos direitos civis na Marcha por Trabalho e Liberdade, ocorrida em Washington, D. C., em 28 de agosto de 1963. Fonte: Encyclopædia Britannica. Acesso em 20/09/22.

Palavras do Editor

Estamos diante de mais um belíssimo texto da historiadora Doutora Carolina da Cunha Rocha, que defendeu a sua tese de doutoramento no Colegio de México, em 2021.

A leitura do seu trabalho motivou-me a fazer algumas considerações sobre o entorno dele. Acredito que o texto emerge de uma conjuntura – termo muito apreciado, especialmente, por volta dos anos 1970, nos acalorados debates com os estruturalistas.

Neste sentido, selecionei cinco lugares de memória, como diria Pierre Nora, ou espaços de memória coletiva, dentre muitíssimos outros possíveis, para pontuar, de alguma forma, os pilares que dão sustentação às lúcidas reflexões da autora.

Um registro pessoal sem escrúpulos

Decidi começar com um registro pessoal de William Byrd II (1674-1744). Fazendeiro e grande proprietário rural da Virgínia. Agrimensor, homem de letras, conhecedor de arte e autor. Educado em Londres, onde exerceu a advocacia. E retornou à Virgínia em 1705, após a morte do seu pai.

Byrd II possuía em torno de 15.000 alqueires de terras. Para se ter uma ideia desta extensão, recordo que em média, 1 alqueire mede cerca de 50.000 m². Numa de suas propriedades foi fundada a cidade de Richmond, que se tornou a capital dos Estados Confederados da América, no período da Guerra Civil (1860-1865). Por mais de três décadas foi membro do Conselho da Virgínia. Sua biblioteca era constituída por mais de quatro mil volumes.

Representação da plantação de Willian Byrd II na Virgínia, autor desconhecido, cerca de 1700.
Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em: 20/09/2022.

Encontrou-se um diário com anotações referentes ao período entre 1709 e 1712. Segundo os editores do texto, Byrd II considerava-se um bondoso senhor de escravos e, em algumas de suas cartas, insurgiu-se contra maus proprietários de escravos.

Se aceitarmos como razoável o ponto de vista dos editores, aí está um modo não extremo de como era tratado um ser humano na situação de escravo nas Treze Colônias Inglesas da América do Norte. Todavia, o quadro é estarrecedor, sobretudo pela naturalidade com que foi registrado. Merece reflexão. Senão vejamos:

10.06.09: Eugene foi açoitado por fugir e foi-lhe colocado o freio (Eugene era apenas um menino).

16.12.09: Eugene foi açoitado por nada ter feito ontem.

15.07.10: Minha mulher, contra a minha vontade, fez com que a pequena Jenny fosse queimada com ferro em brasa…

22.08.10: Tive uma séria discussão com a pequena Jenny e bati-lhe demais, do que me arrependi.

31.08.10. Eugene e Jenny açoitados.

11.01.11: Discuti com minha mulher por ela ter sido cruel com Brayne…

22.01.11: Um escravo finge estar doente. Imponho o ferro de marcar no local de que ele se queixava e coloco-lhe o freio.

02.02.11: Minha mulher e a pequena Jenny tiveram uma grande discussão em que minha mulher levou a pior, mas, finalmente, com a ajuda da família, Jenny foi dominada e severamente açoitada.

04.08.11: Eu estava indisposto por ter surrado Prue, e cansado…

06.06.12: …encontrei Prue com uma vela acesa de dia, pelo que lhe dei uma saudação com meu pé.

Os trechos mencionados acima foram retirados de APTHEKER, H. Uma nova história dos Estados Unidos: a Era Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 42-45.

Um ex-escravo fala sobre a independência dos Estados Unidos

Trago, na sequência, um texto duro sobre a independência dos Estados Unidos, que traduz o estado de alma de um ex-escravo, que adquiriu certo prestígio e cultura letrada. Refiro-me a Frederick Augustus Washington Bailey (1818-1895), nome que lhe foi dado ao nascer. Considerado um dos mais destacados afro-americanos do século XIX, este abolicionista exerceu forte pressão sobre Lincoln.

Escravo foragido, durante a Guerra Civil atuou no sentido de inserir o negro na luta contra a Secessão. E, finalizado o movimento bélico, continuou a sua luta pela igualdade entre negros e brancos e entre homens e mulheres.

Frederick Douglass, como passou a ser chamado após tornar-se livre, pregou sempre a rebeldia contra todas as formas de opressão. Orador reconhecido pelo seu talento e inflexível na defesa dos seus ideais, foi considerado “o pai do movimento pelos direitos civis” no seu país.

Além da sua luta a favor da abolição da escravatura, Douglass notabilizou-se pela sua luta pelos direitos da mulher, pela reforma agrária, pela educação pública, gratuita e de qualidade, pela abolição da pena de morte etc.

Frederick Douglass em sua casa em Cedar Hill, Washington, D.C., autor desconhecido, sem data. Fonte: Encyclopædia Britannica. Acesso em 20/09/22.

Frederick Douglass apelando para o Presidente Lincoln e seu Gabinete para alistar negros, William Edouard Scott, 1943. Fonte: Encyclopædia Britannica. Acesso em 20/09/22.

O texto de Douglass prima-se pela clareza e pela ausência das meias-palavras:

Companheiros e cidadãos! Por que fui convidado para falar hoje a vocês? O que os negros dos Estados Unidos têm a ver com a independência dos Estados Unidos? Será que os grandes princípios da liberdade política e da justiça natural, presentes na Declaração da Independência, aplicam-se também a nós? (…)

Não me incluo entre aqueles que participam desse glorioso aniversário! A grande independência que vocês comemoram revela somente a imensa distância que nos separa. A rica herança de justiça, liberdade, prosperidade e independência, transmitida por seus pais, pertence somente a vocês, e não a mim. Da mesma forma, o dia que para vocês representa a luz e a esperança, significa para os negros os grilhões e a morte. Este 4 de julho é de vocês, não meu. Vocês podem, se quiserem, ficar alegres; quanto a mim, só resta o lamento. Trazer um homem acorrentado para o interior do templo iluminado da liberdade e convidá-lo para compartilhar de uma alegria que não lhe é comum, seria somente zombar deste homem de maneira desumana.

Meu assunto, portanto, é a escravidão nos Estados Unidos. Assim, falarei deste 4 de julho, e de suas características populares, sob o ponto de vista do escravo. E afinal, o que este dia representa para o escravo americano? Mais do que todos os outros dias do ano, o 4 de julho significa a injustiça, e a crueldade de que o escravo tem sido a vítima constante. Para ele, o que vocês comemoram não passa de uma fraude; a liberdade de que se vangloriam, uma profanação da própria liberdade; sua grandeza nacional, pura vaidade; suas comemorações, vazias e desprovidas de sentimento; suas denúncias de tiranos, simples descaramento; sua defesa da liberdade e igualdade, mera zombaria; suas orações e hinos, seus ofícios religiosos e solenidades são, para o escravo, engodo, decepções, impiedade e hipocrisia – um fino véu para dissimular crimes que cobririam de vergonha uma nação como esta, tão culpada de práticas chocantes e sangrentas.

O trecho acima foi retirado de Jornal Movimento, São Paulo: 5.7.76, Edição nº 53, p. 9.

Em nome da abolição defendeu e praticou ações armadas

Tão ou mais radical que Frederick Douglass, John Brown (1800-1859) e sua luta pela abolição da escravatura, tornaram-se um ícone da História Social dos Estados Unidos no século XIX.

A historiografia norte-americana, a despeito das distintas visões que apresenta sobre a personalidade e as ações deste escravo, possui um ponto em comum: admite a sua importância no começo da Guerra Civil. As consequências psicológicas das investidas de Brown sobre os escravocratas foram, segundo o historiador Davis Potter, mais reveladoras dos antagonismos entre o Norte e o Sul e muito mais impactantes que os debates entre os então candidatos à presidência Lincoln e Douglas. Para alguns, Brown foi um mártir da liberdade e destacado ser humano. Para outros, um terrorista e fanático.

John Brown, John Steuart Curry, 1939. Fonte: Encyclopædia Britannica. Acesso em 20/09/22.

Entre as suas ações, destacam-se o Massacre de Pottawatomie em 1856, no Kansas, envolvendo a morte de cinco pessoas e o malsucedido ataque ao arsenal Harpers Ferry, em 1859, quando foi capturado pelas forças governamentais.

Naquele mesmo ano, foi julgado por traição ao Estado da Virgínia e condenado à morte por enforcamento. Homem de firme autocontrole, encarou a morte com naturalidade. Ao longo do julgamento, pronunciou alguns discursos, que tiveram ampla repercussão nas maiores cidades do país.

Antes de mais nada, recomendo que as ações de Brown devem ser examinadas no contexto das tensões entre nortistas e sulistas, entre republicanos e democratas, num quadro nacional de pânico em decorrência da Revolução Haitiana.

A título de ilustração, menciono uma frase do escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882) que causou desagrado e desaprovação a políticos e a grandes proprietários: “Este novo santo, o mais puro e corajoso de todos os homens que têm marchado para a luta e para a morte impelidos pelo amor da humanidade (…), fará com que a força seja tão gloriosa como a cruz”. (MORISON, Samuel Eliot; COMMAGER, Henry Steele. História dos Estados Unidos da América, v. II. São Paulo: Edições Melhoramentos, sd., p. 63-64.)

Além disso, ressalto que este lugar de memória se complementa com a expressiva produção artística do pintor irlandês Thomas Hovenden (1840-1895), que viveu muitos anos nos Estados Unidos retratando cenas familiares do cotidiano, deixando diversos trabalhos sobre afro-americanos.

Últimos momentos de John Brown, Thomas Hovenden, 1882-1884. Fonte: Encyclopædia Britannica. Acesso em 20/09/22.

Ser negro no país de brancos

Proponho, esquematicamente, um outro lugar de memória. Vida, obra e legado de James Mercer Langston Hughes (1902-1967). Poeta. Novelista. Dramaturgo. Comunista. Ativista. A sinuosa trajetória de um intelectual engajado, que fez carreira em New York. Pioneiro do estilo “Jazz poetry”, foi o mais famoso representante do movimento intitulado “Renascimento do Harlem”.

Movimento modernista negro, o “Renascimento do Harlem” ocorreu durante os Anos Vinte do século XX. Naquele contexto, a produção poética de Hughes traduziu as alegrias e as frustrações do cotidiano afro-americano. As cadências do jazz marcaram o compasso da literatura. Além do dele, figura os nomes de Claude McKay, Jean Toomer, Zora Neale Hurston e outros.

Langston Hughes, Jack Delano, 1942.
Fonte: Encyclopædia Britannica. Acesso em 20/09/22.

O texto “The Negro Artist and the Racial Mountain” (1926) tornou-se o Manifesto Modernista. Pouco menos de uma década mais tarde, em 1935, o drama “Mulatto”, focado num personagem alienado, converteu-se numa dura e violenta acusação contra o sistema racial dos Estados Unidos. Os seus textos, bem como as suas manifestações públicas contribuíram para o avanço social e civil da população afro-americana do seu país.

Apenas um poema como ilustração:

Harlem

Que fazer?
Aqui ao lado do inferno
Está o Harlem
Que recorda as eternas mentiras
As eternas patadas no traseiro
O eterno sed pacientes
Que nos disseram tão amiúde
Por certo que o recordamos
Porém quando o garoto do bazar da esquina
Nos diz que o açúcar voltou a subir dois centavos
E o pão um centavo
E que há novas taxas para o cigarro…
Então recordamos o emprego que jamais tivemos
Que jamais pudemos ter
E que agora não temos
Porque somos gentes de cor
Então ficamos aí
Ao lado do inferno
No Harlem
E olhamos de costas o mundo
E nos perguntamos o que vamos fazer
Com todas estas recordações aí
Diante de nós.

Uma nação envergonhada

A morte de George Perry Floyd Junior (1973-2020) ocorrida em Minneapolis, Minnesota, USA, no dia 25 de maio de 2020 envergonhou a nação. Este afro-americano foi assassinado por estrangulamento, por um policial branco que se ajoelhou sobre o seu pescoço e costas, por oito minutos e 46 segundos, durante uma abordagem policial. O episódio, filmado em toda a sua extensão, gerou uma densa onda de indignação e protestos contra o racismo em todo o território norte-americano e espalhou-se por quase todo o mundo.

O movimento ativista antirracista “Black Lives Matter” exigiu reformas dos protocolos policiais e da legislação no trato com as desigualdades raciais.

Manifestação na cidade de Boston, em Maio de 2020, contra a brutalidade da polícia.
Fonte: Encyclopædia Britannica. Acesso em 20/09/22.

O fato tornou-se mais grave em decorrência da crueldade. Algemado de bruços, dois outros policiais o subjugaram enquanto um quarto policial impediu a intervenção das pessoas ao redor. Floyd já inerte e sem pulsação não recebeu por parte dos policiais nenhuma forma de socorro.

Considerações finais

A minha intenção foi trazer à memória do leitor do texto da Carolina da Cunha Rocha, aspectos esparsos da construção de uma realidade histórica de longa duração, sobre a qual com tamanha maestria, ela a examinou no seu texto, com temática e cronologia definidas com muita precisão.

Minha primeira preocupação foi chamar a atenção para os tempos da implantação da escravidão na situação colonial.

Na sequência, avancei no tempo mostrando dois aspectos da resistência de escravos no século XIX, no quadro das tensões da Guerra Civil.

Já na primeira metade do século XX, portanto, transcorrido quase um século após a abolição da escravatura, me ocorreu recordar Langston Hughes e sua obra, como significativo lugar de memória.

Finalmente, hoje em dia, George Floyd tornou-se um testemunho eloquente de que a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos está muito distante do seu fim.

Convido você a se deliciar com a leitura do texto da nossa gentil colaboradora.

Autora: Carolina da Cunha Rocha
Mais sobre a autora.

Como citar este post: ROCHA, Carolina da Cunha. Canções de resistência, canções de esperança. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/cancoes-de-resistencia-cancoes-de-esperanca/. Publicado em: 28/09/2022. Acesso: [informar a data de acesso].

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