A fidalguia e a Conquista da Nova Espanha

Massacre de Cholula por conquistadores espanhóis – Lienzo de Tlaxcala. Fonte: Wikimedia Commons.
Acesso em: 09/01/2021.

Este roteiro propõe uma reflexão em torno da fidalguia na chamada Nova Espanha, no século XVI.

A fidalguia e a Conquista da Nova Espanha

Para tanto, sugere-se a análise de “Os conquistadores apresentam pretensões em nome das tradições”, um fragmento do escrito de Bernal Díaz del Castillo – Historia verdadera de la conquista de la Nueva España. Juntamente a esta fonte primária, e para auxiliar seu estudo, apresenta-se um trecho de “A construção da fidalguia”, escrito pelo historiador Ronaldo Vainfas.

O escrito de Bernal Diaz del Castilho:

Já falei de nós, os soldados, que partimos com Cortés, e do lugar onde eles morreram, e se se quer saber alguma coisa das nossas pessoas [é preciso dizer que] nós éramos todos hidalgos, ainda que alguns não possam prevalecer-se de linhagem tão clara, porque é bem conhecido que neste mundo os homens não nascem todos iguais, nem em generosidade nem em virtude. Mas deixando isso de lado, além da nossa antiga nobreza – com as ações heroicas e os altos feitos que realizámos nas guerras, lutando dia e noite, servindo o nosso rei e soberano, descobrindo estas terras e indo até à conquista desta Nova Espanha e da grande cidade de México e outras numerosas províncias, estando tão longe de Castela, sem ter outra proteção além da de nosso Senhor Jesus Cristo, que é a verdadeira proteção e auxílio – estamos muito mais enobrecidos do que dantes. E se olharmos as antigas escrituras que falam disso [veremos que] nos tempos passados foram cobertos de louvores e elevados a alta condição numerosos cavaleiros, tanto na Espanha como noutros países, que tinham servido nas guerras e noutros serviços úteis aos reis que então reinavam. Também observei que alguns desses cavaleiros que outrora obtiveram títulos de Estado e de nobreza não iam para as sobreditas guerras nem se empenhavam nas batalhas sem que antes se lhes pagassem soldo e salário, e apesar do fato de lhes pagarem davam-lhes com liberalidade cidades, castelos e grandes terras, e privilégios perpétuos, que os seus descendentes ainda possuem. E, além disso, quando o rei Don Jaime de Aragão conquistou aos mouros uma boa parte dos seus reinos, partilhou-os entre os cavaleiros e os soldados que participaram na sua conquista, e desde então têm os seus brasões e são poderosos. E, também quando se conquistou Granada, e na época do Gran Capitán em Nápoles e do Príncipe de Orange igualmente em Nápoles [os reis] deram terras e senhorios àqueles que os ajudaram nas guerras e batalhas. Recordei tudo isto a fim de que, se olharmos os bons e numerosos serviços que prestámos ao rei nosso senhor e a toda a cristandade, e os pusermos numa balança, pesada cada coisa segundo o seu justo valor, se veja que nós somos dignos e merecemos ser recompensados como os cavaleiros de que falei mais acima.

O escrito de Ronaldo Vainfas: A construção da fidalguia

“Já falei de nós, os soldados, que partiram com Cortés, e do lugar em que eles foram mortos, e se quiserem saber alguma coisa sobre nossas pessoas, é preciso dizer que éramos todos ‘hidalgos’, mesmo se alguns não possam se valer de linhagem muito clara…”. [Apud ROMANO, R. Mecanismos da conquista colonial: os conquistadores, São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 73]. A explicação de Bernal Díaz del Castillo, na sua Historia verdadera de la conquista de la Nueva España, ilustra, sem rodeios o modo pelo qual os conquistadores se autodefiniam: fidalgos de fato, senão de linhagem, ou seja, uma fidalguia adquirida no serviço do rei e de Deus. Com efeito, foi sobre a base da “glória militar” que se construiu, durante o século XVI, os rudimentos de uma “nobreza americana”, não tanto como estrato social, senão como projeção ideológica, apoiada nos valores medievais da cruzada e da cavalaria, ou na moderna noção de fidelidade ao rei e ao Estado. As petições dos conquistadores junto à Coroa, relacionadas à posse fundiária ou à manutenção de encomienda, aludem sempre aos serviços prestados ao rei por fiéis vassalos: e se os reis da Reconquista premiavam os cavaleiros da península, por que os monarcas da conquista não fariam o mesmo com os cavaleiros de ultramar? Eis a lógica dos conquistadores, expressa nos termos da relação vassalo/suserano ou da relação súdito/monarca. E se a consciência da situação colonial não chega sequer a esboçar-se nesta época, as expectativas autonomistas dos conquistadores não preconizam, nem de longe, a ideia de independência.

À noção de “hidalgo” como cavaleiro glorioso veio somar-se, no século XVII, uma ideologia de nobreza apoiada na posição social e no modo de vida aristocráticos. É a sutil evolução de uma concepção épica da fidalguia para uma concepção hierárquica de privilégio social adornada com o mito da superioridade espanhola. Os senhores da América se viam como descendentes diretos dos conquistadores, do que muito se orgulhavam, como na Recordación Florida, do guatemalteco António de Fuentes y Guzmán. E valorizavam, sobremodo, o habitus aristocrático da frivolidade, do desdém pelo trabalho, do apego à ociosidade. Procuravam, assim, “esconder” as fontes de sua riqueza, que não radicavam na origem nobre, e nem sempre na ascendência espanhola, senão na ocupação de cargos públicos, no comércio e na exploração de empresas coloniais. Era preciso alimentar a ilusão de que a riqueza era uma “antiga riqueza”, um resultado da “pureza de sangue” e não o suporte de uma nobreza inventada. “Ilusão dos fidalgos – lembra-nos J. L. Romero –, mas tão entranhável que se convertia em realidade a quem os contemplava, mascarada por todo o sistema de convenções que procurava pôr distância entre eles e os seus submetidos, e evidenciar sua congênita superioridade”. [Romero, J. Luís. Latinoamérica: las ciudades y las ideas. México: Siglo XXI, 1976, p. 91]. O século XVII, época do barroco espanhol, foi também o tempo do barroco hispano-americano, não só nas artes e nas construções, mas nas concepções sociais da classe dominante colonial.

A fidalguia barroca era, assim, enredo de uma peça teatral e carecia de um palco para realizar os seus fins. A posição nobre, e sua distância em relação aos demais tipos sociais, não se podia representar nas “haciendas” ou nos filões de prata, onde a exploração econômica era devassada, e onde cada senhor-empresário vivia isolado. Era preciso um cenário onde os senhores ficassem juntos diante da massa da população, e fizessem ver a ela e a si próprios a ostentação de uma vida frívola. O palco espontâneo acabou sendo o das cidades, núcleo essencial na cristalização da fidalguia. Cidades como México e Lima, capitais vice-reinais, foram as cidades fidalgas por excelência, mas também o foram S. L. de Potosi, Guanajuato, Zacatecas, Puebla, Arequipa e muitas outras. Nelas, a concepção fidalga podia imperar e solapar os estímulos mercantis e a exploração social que sustentavam, de fato, os senhores coloniais. Mas a cidade não era só teatro: era também núcleo de poder, mercado, e fortaleza da classe dominante contra os assaltos da massa explorada. A cidade era, ao mesmo tempo, o palco da fidalguia, e o núcleo onde se firmavam os laços de solidariedade entre os senhores da América colonial.

A fidalguia alastrou-se por toda a parte, fazendo das cidades seu núcleo de expressão máxima, por onde desfilavam as “famílias senhoriais” exibindo o luxo de uma “nobreza autêntica”. Mas houve cidades pouco ajustadas a esta função: Vera Cruz, Acapulco, Porto Belo, Cartagena, cidades essencialmente portuárias, onde o ir e vir de pessoas, muitas das quais estrangeiras, e onde a circulação de mercadorias, dinheiro e ordens de pagamento diluíam qualquer ilusão de fidalguia mais consistente. O “espírito mercantil” impregnava, então, a consciência da classe dominante, menos nobre do que empresária, mas ainda assim fidalga.

Portos e cortes vice-reinais, cidades mineiras ou centros artesanais, as cidades foram o espaço privilegiado da fidalguia. Fidalguia adquirida, que não pôde evitar, em maior ou menor grau, o sentido mercantil da colonização. Fidalguia peculiar que, na América espanhola, se viu acrescida do preconceito étnico e da valorização da cor.

Roteiro

Desenvolva cada um dos tópicos listados ao lado.

Desenvolva os seguintes tópicos:

1. Construa uma síntese da vida de Bernal Díaz del Castillo.

2. Caracterize a sua Historia verdadera de la conquista de la Nueva España.

3. Sintetize o contexto histórico vinculado ao autor e seu texto.

4. Comente a ideia central do fragmento apresentado e seus fundamentos.

5. Faça uma conexão entre o fragmento e a construção da fidalguia na Hispano-América, segundo Ronaldo Vainfas.

Autor: Prof. Dr. Dinair Andrade da Silva

Elaborado com base em: “Os conquistadores apresentam pretensões em nome das tradições”: Fragmento da Historia verdadera de la conquista de la Nueva España, de Bernal Diaz del Castillo. In: ROMANO, Ruggiero. Os conquistadores da América. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1972, p. 76-77 e “A construção da fidalguia”. In: VAINFAS, Ronaldo. Economia e sociedade na América espanhola. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, p. 99-101.

Como citar este post: SILVA, Dinair Andrade da. Roteiro de análise de fonte primária – Os conquistadores apresentam pretensões em nome das tradições. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/os-conquistadores-apresentam-pretensoes-em-nome-das-tradicoes/. Publicado em: 10/11/2020. Acesso: [informar a data de acesso].