Plátano guineo, José María Gutiérrez de Alba, 1874.
Fonte: Banco de la República. Acesso em: 24/05/2022.
Na primeira parte de “Uma análise literária e histórica de La hojarasca”, tratamos de temas substanciais do romance. Nesta segunda parte, também relevante para a compreensão da obra, abordaremos os assuntos mais referenciados, apresentaremos os personagens mais significativos com suas características e atributos e, então, faremos algumas reflexões finais.
Alguns temas tratados pelo romance
A leitura do romance oferece ao leitor diversos temas. Entre os mais significativos, a morte, o cadáver, a solidão, a guerra, o capitalismo, a modernização e a imigração.
A morte
A morte perpassa o romance por inteiro. Aparentemente, é o tema mais importante. Ela não foi natural, diríamos. Sem dúvida, trata-se de uma morte autoimposta, posto que o doutor, após ter ficado por dez anos recluso em sua própria casa, se suicidou.
O cadáver
Depois de abandonar a prática da medicina, o doutor não deu assistência médica a mais ninguém. Tornou-se, por isso, odiado por todos em Macondo. Uma vez morto, a população insistiu em deixá-lo insepulto, decompondo-se em sua própria casa.
A solidão
Este tema envolve o povoado e as pessoas que nele habitam. No relato, a solidão está presente não somente na vida do médico, mas na vida do coronel, de sua filha e de seu neto. A solidão é uma decorrência do isolamento. A família do coronel poderá ficar também isolada, caso consiga sepultar o doutor. E Isabel tem plena consciência desta realidade.
A guerra
Este tema não é tão destacado quanto a morte e a solidão. Todavia, está presente na trama. Estou seguro de que as diversas guerras civis, ocorridas entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, envolvendo liberais e conservadores, fazem parte da estrutura e funcionamento do Estado Nacional oligárquico colombiano, como de resto, em diversos outros países da América Latina. Esta realidade, como não poderia deixar de ser, refletiu-se também em Macondo.
O capitalismo
Concluída a Guerra de Secessão dos Estados Unidos (1860-1865), estes se lançam sobre diversas regiões da América Latina, numa verdadeira expansão capitalista. É neste contexto, que o relato de García Márquez traz para Macondo a companhia bananeira.
Trabalhador da United Fruit Company em 1913.
Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em: 21/06/2022.
A modernização
O elemento distintivo deste tema no romance La hojarasca é a ferrovia. Com ela, vem outras novidades, como o telégrafo e a mobilidade daqueles que estão em busca de melhoria das condições de vida.
A imigração
O autor, com sua capacidade ímpar de efetuar múltiplas conexões, desenvolve com maestria o tema dos estrangeiros e dos “recién llegados”. Atentemos para as migrações internas desde então. Há um fluxo significativo dos que buscam oportunidades onde elas se apresentam. Macondo também passa por este processo, em razão da presença da companhia bananeira ali.
Personagens mais destacados em La hojarasca
É deveras interessante compreender que os personagens de García Márquez transcendem o sentido de vozes individuais. São, na verdade, atores relevantes não só da sociedade colombiana, mas também da sociedade latino-americana. A apresentação destes personagens se fará por meio de breves considerações a propósito de suas características e atributos.
O Coronel
Homem idoso, debilitado em razão da idade, respeitado por todos do povoado. Suas ações são de homem ciente de seus compromissos, desapegado e, de certa forma, justo.
Isabel
Esposa de Martín, filha do coronel e mãe do garoto. Mulher jovem, reconhecida pela sua honestidade, profundamente ligada aos princípios da fé católica.
O garoto
Trata-se de um personagem profundamente relevante na trama. Macondo é narrado por meio das reflexões deste menino.
O médico
Muitas vezes referido como o Doutor. É o morto. Os habitantes do povoado consideram-no indigno de ser sepultado. No romance, é uma pessoa sombria. Homem solitário. Possuía algum respeito por parte do coronel, que manifestou compromisso de sepultá-lo.
El Cachorro
Refere-se à representação do clérigo que não se identifica com as virtudes da moral cristã. Homem distante dos dogmas da religião, portanto, identificado com a visão de mundo caribenha. Representa a desordem e é um estrangeiro que chegou junto com a “hojarasca”. É bom esclarecer que a hostilidade de García Márquez à religião está vinculada ao papel desempenhado pela Igreja Católica, como instrumento ideológico e repressivo do Estado, em meados do século XX, período de predomínio conservador na Colômbia.
Martín
Marido de Isabel. Jovem simpático e astuto que enganava a todos, servindo-se das mais diferentes manobras. Entretanto, é muito admirado em Macondo, inclusive pelo coronel. O seu casamento está fundado no interesse pelos bens do seu sogro. A despeito de estar ausente por longo período, o coronel tenta manter as aparências: “han transcurrido nueve años pero no por ello tengo derecho a pensar que era un estafador. No tengo derecho a pensar que su matrimonio fue apenas una coartada para persuadirme de su buena fé.” Todavia, no seu íntimo, o coronel sabe que foi ludibriado: “si ambos nos equivocamos al confiar en Martín, corre como error compartido”.
Alcaide
O alcaide é um homem desonesto e corrupto. Veja o diálogo entre ele e o coronel a propósito do sepultamento do doutor: “Y entonces comprendo que es deliberadamente ilógico, que está inventando trabas para impedir el entierro.” Neste caso, chamo a atenção para o conflito entre a visão de mundo lógica, racional e ocidental cristã e a visão de mundo ilógica, irracional e caribenha. A narrativa está organizada segundo as linhas da visão caribenha. O coronel passa a ser menos ortodoxo ao ouvir o alcaide: “Coronel, esto podríamos arreglarlo de otro modo.” Então, a esta altura, o coronel diz ao alcaide: “Cuánto”.
Considerações finais
Este romance, na verdade, pode ser comparado a um laboratório onde García Márquez faz diversos experimentos que englobam temas, personagens e situações que serão posteriormente desenvolvidos e aprimorados em outros trabalhos. Eu diria que La Hojarasca representou uma fonte a jorrar elementos de distintas intensidades e modulações nas produções posteriores do autor.
Tendo como uma de suas características o que foi denominado de multiperspectivismo – três vozes distintas (o coronel, sua filha e seu neto) diante de um mesmo cenário, o autor não teve a preocupação de oferecer ao leitor um final para o romance. Pelo contrário, García Márquez deixa a cada leitor a tarefa de imaginar o grande final. O coronel, em razão dos seus valores, sepultaria o cadáver do médico. Por outro lado, os habitantes de Macondo, estribados no ressentimento e na raiva, deixariam insepulto o corpo do estrangeiro.
Deve-se enfatizar a atualização feita pelo autor do dilema ético – atemporal e universal – posto por Sófocles em sua Antígona, mencionada na “Epígrafe” do romance. Em outras palavras, põe-se uma oposição. O coronel simbolizando a virtude, a tradição e a ordem; e o povo massacrado e explorado pela companhia bananeira e dominado pelo ódio ao médico, simbolizando a justiça feita com as próprias mãos.
La Hojarasca é uma obra que inaugura as origens do Caribe colombiano. Neste sentido, se coloca como um espelho da evolução histórica e da formação social da região. A narrativa textual expõe uma visão de mundo singular e própria do espaço caribenho.
Trata-se, como dissemos, de um contraponto que se impõe, definitivamente, à visão do mundo moralista, do cristianismo herdado da Europa medieval e moderna. Em consequência, estabelece um novo panteão de heróis construídos em outros padrões e com outros valores.
Esta análise é documentada no romance por meio do realce que é dado ao recém-chegado, ao estrangeiro e, num sentido inverso, ao abandono que se impõe às populações originárias. Quanto à técnica literária, introduziu-se o meta-relato ou relato-espelho e o discurso existencial, servindo-se de heróis investidos de valores contrários aos tradicionais.
Este primeiro romance de García Márquez, para ser compreendido em toda a sua profundidade e riqueza semântica, deverá ser analisado no contexto do processo sócio-histórico que emoldura a região caribenha da Colômbia, na transição do século XIX para o século XX. Este processo está configurado pela modernização, povoamento, urbanização e questões identitárias.
Referências bibliográficas
ABELLO VIVES, Alberto, et al. Poblamiento y ciudades del Caribe colombiano. Bogotá: Gente Nueva, 2000.
Alfredo Bosi. “A parábola das vanguardas latino-americanas”. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EDUSP/ Iluminuras/FAPESP, 1995. p. 19-28.
Ángel Rama. “Un novelista de la violencia americana”. In: GIACOMAN, Helmy F. (coord). Homenaje a Gabriel García Márquez. Madrid: Anaya, 1972. p. 57-72.
Antônio Cândido. “Literatura y subdesarrollo”. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972. p. 335-349.
Antônio Cândido. “Uma visão latino-americana”. In: CHIAPPINI, Lígia; AGUIAR, Flávio Wolf (orgs). Literatura e História na América Latina: Seminário Internacional, 9 a 13 de setembro de 1991. São Paulo: EDUSP, 1993. p. 253-262.
AVELLA, Francisco. Del proceso identitario al pensamiento caribe. Universidad Nacional de Colombia, Maestría en Estudios del Caribe, 2001.
BAL, Mieke. Teoría de la narrativa: una introducción a la narratología. Madrid: Cátedra. 1995.
BERND, Zilá (org.) Americanidade e transferências culturais. Porto Alegre: Movimento, 2003.
BLOOM, Harold (ed.). Gabriel García Márquez. New York: Chelsea Books, 1989.
CAMACHO, Álvaro. La Colombia de hoy: sociología y sociedad. Bogotá: Fondo Editorial CEREC, 1986.
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997.
CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais/ Edições Vértice, 1987.
CEBRIÁN, Juan Luís. Retrato de García Márquez. Barcelona: Círculo de Lectores, 1989.
César Fernandez Moreno “¿Qué es la América Latina?” In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972. p. 5-18.
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
CROS, Edmond. Literatura, ideología y sociedad. Madrid: Gredos, 1983.
Emir Rodríguez Monegal. “Tradición y renovación”. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972. p. 139-162.
Ernesto Volkening. “Gabriel García Márquez o el trópico desembrujado”. In: GIACOMAN, Helmy F. (coord). Homenaje a Gabriel García Márquez. Madrid: Anaya, 1972. p. 87-96.
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
George Robert Coulthard. “La pluralidad cultural”. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972. p. 53-72.
JARDEL, Jean. “La pensée créole des Antilles”. In: Encyclopédie Philosophique Universelle. Tome I, Paris: P.U.F., 1992.
MARTÍN, Gerald. Gabriel García Márquez: uma vida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.
MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
MOUSÉIS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
Pedro Lastra. “La tragedia como fundamento estructural en La hojarasca”. In: GIACOMAN, Helmy F. (coord). Homenaje a Gabriel García Márquez. Madrid: Anaya, 1972. p. 43-56.
POULIQUEN, Hélène. “Texto literario y desestabilización de la ideología: lectura sociocrítica del preámbulo de La hojarasca, de Gabriel García Márquez”. In: Teoría y análisis sociocrítico. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 1994.
RODRIGUES, Selma Calasans. Macondoamérica: a paródia em Gabriel Garcia Márquez. Rio de Janeiro: Leviatã Publicações, 1993.
Rubén Bareiro Saguier. “Encuentro de culturas”. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972. p. 21-40.
Autor: Prof. Dr. Dinair Andrade da Silva
O texto deste post foi elaborado com base no conhecimento adquirido durante os cursos “Leer a Macondo: la obra de Gabriel García Márquez” e “Gabriel García Márquez entre el poder, la historia y el amor” e nas referências bibliográficas acima colocadas.
Como citar este post: SILVA, Dinair Andrade da. Uma análise literária e histórica de La hojarasca – Parte 2. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/uma-analise-literaria-e-historica-de-la-hojarasca-parte-2/. Publicado em: 29/06/2022. Acesso: [informar a data de acesso].
Atenção: Por favor, reporte possíveis equívocos escrevendo para: ola@historiasdasamericas.com
Deixar um comentário