Capa da primeira edição do romance La Hojarasca.
Fonte: Centro Gabo . Acesso em: 24/05/2022.

Em razão da especificidade da obra, esta análise literária e histórica será dividida em duas partes.

A engenhosidade da narrativa

Este romance refere-se ao enterro de um médico enigmático e odiado pelos habitantes de Macondo, um povoado localizado na região caribenha da Colômbia. Retrata o ódio acumulado pela população durante longos vinte e cinco anos, que resiste sepultá-lo.

O início da narrativa é marcado pela descrição da morte do médico de nacionalidade francesa que, desde 1903, residia ali. Inicialmente respeitado por todos e posteriormente por todos renegado.

O relato foi construído a partir dos monólogos de três personagens de uma mesma família: o avô (um coronel idoso), a filha do coronel (Isabel) e o neto (filho de Isabel).

García Márquez utiliza o perspectivismo, uma técnica narrativa onde vários personagens narram, cada qual com voz específica, a mesma cena.

Isabel, por respeito aos valores paternos, obrigou-se a acompanhar, com seu filho, o pai no velório do médico, sabendo que seriam logo odiados pelos moradores de Macondo, e, com certeza, hostilizados após a morte do coronel.

García Márquez de maneira magistral mostra ao leitor uma realidade cheia de sentido: o significado e o conteúdo de um olhar. Por meio dos olhos do menino, neto do coronel, que percorria o entorno do ataúde, vislumbrava-se não só a morte do médico, como também a decadência de Macondo, marcada pelo fim do seu esplendor, em decorrência das guerras civis, que consumiram as suas riquezas, entulhando ruas e casas com “…una hojarasca formada de desperdicios naturales y humanos”.

Na verdade, La hojarasca, esta “tormenta de hojas” é uma magnífica metáfora para designar a chegada e a saída da companhia bananeira em Macondo. De início, trouxe a prosperidade do povoado, arrastando uma multidão de forasteiros, e, após algum tempo, a sua brusca saída deixa uma lenta e sofrida decadência, isolamento e solidão. Trata-se de um ciclo que se abre e que se fecha.

Pode também significar mudanças sociais profundas. Portanto, no quadro geral desta “hojarasca”, descrita literariamente pelo autor como totalmente fora de controle, está a companhia bananeira norte-americana, apresentada no “Prólogo” do romance.

O massacre como repressão aos grevistas, trabalhadores da companhia bananeira, estaria vinculado à ação das forças armadas da Colômbia, na administração do presidente Miguel Abadía Méndez, no início de dezembro de 1928.

O uso de oposições

No romance encontramos duas visões antagônicas de mundo. De um lado, “Nós”; do outro, diríamos “Eles”. A primeira visão representa o modelo da ordem, identificado pelas famílias tradicionais que fundaram o povoado. Tem como símbolo a figura mítica do coronel. A segunda, revela o modelo da imprevisibilidade, caracterizado pela defesa de valores contrários, pressupondo um processo de desagregação. Está constituída pelos desambientados pelas guerras civis, entusiasmados pela oportunidade de trabalho que se abre com a chegada da companhia bananeira ao povoado.

Traços da visão caribenha do mundo

Da narrativa de La hojarasca, pode-se depreender uma visão caribenha do mundo caracterizada por valores próprios, em razão do sincretismo e do integracionismo, marcados por uma oposição aos princípios da moral cristã. Nessa perspectiva, cria-se uma tipologia singular de heróis.

Arrancando da literatura a história

Depreende-se do romance a ideologia da elite liberal colombiana em crise. De certa forma, este fenômeno orienta o desenvolvimento do relato. Ao que parece, o romance avalia o estágio da modernidade em Macondo.

O marco geográfico onde se situa o mundo social construído pelo autor é identificado no romance como o Caribe colombiano. Nesta geografia literária, está um povoado novo que se constrói, em contraposição a outros da região andina. Ali, as populações autóctones vão sendo gradativamente substituídas pelos que vão chegando. Este fenômeno não é, como sabemos, uma realidade colombiana apenas, mas abarca, de um modo geral, todas as sociedades caribenhas.

Em La hojarasca, este mundo social é construído por meio da articulação de três elementos significativos: aquele que chega, aquele que vai sendo expurgado e o camponês explorado.

Macondo é um povoado fundado há trinta anos pelos recém-chegados, por tanto um núcleo urbano recente. Tem a mesma idade de Isabel, filha do coronel. Ao que parece, um dos objetivos do romance é registrar não somente a sua evolução, mas também a “novedad” de sua origem pouco afastada no tempo.

“Los recién llegados” e os estrangeiros

O romance, com menos de cem páginas, está emoldurado por um período de transição da história da região norte da costa colombiana. Verifica-se ali a substituição da população originária por uma população forasteira. São “los recién llegados”, como se lê no “Prólogo” do romance. O resultado é um sincretismo – cultural e racial – que espelha nova e original visão do mundo.

Certamente, García Márquez tinha interesse em discutir a origem e a identidade de Macondo, para reconhecer ali a presença de estrangeiros e dos “recién llegados”. Na verdade, foram eles que deram vida ao romance. A título de exemplo, a narrativa envolve a presença de um médico francês e do líder do povoado que, por sua vez, é também um estrangeiro.

Martín, também recém-chegado, é um rapaz de boa aparência, atraente apresentado como “un personaje extraño en el pueblo” que encanta a todas as mulheres. Exerce alguma influência, inclusive sobre o coronel.

Vale ressaltar que nas uniões matrimoniais em Macondo, as mulheres têm sempre os seus relacionamentos com estrangeiros. Este detalhe nos chama a atenção para a tendência ao sincretismo e ao integracionismo das sociedades do Caribe em geral.

Na narrativa deste romance, tem lugar especial a figura do estrangeiro como elemento essencial, constitutivo da formação social de Macondo. Neste povoado, se entrelaçam um espectro enorme de sentimentos como o amor e o desamor, a vingança e o ódio, a melancolia e a frustração, a esperança e o desespero, a paixão e a solidão.

A despeito de ser a extinção quase total das sociedades originárias um dos traços característicos do mundo caribenho, García Márquez faz alusões aos indígenas, e mais ainda aos camponeses.

Discorre sobre o contato avassalador do colonizador espanhol com os povos indígenas, mencionando os drásticos efeitos deste encontro. Seguidamente, aborda a substituição da população indígena, em descenso, pela população negra trazida das Antilhas e do continente africano. Revelando o seu conhecimento da história colonial hispano-americana, o autor focaliza a decadência da “encomienda” como sistema de produção.

Por outro lado, García Márquez também explica o processo de extermínio das sociedades originárias, por meio de uma forma mítica ou mágica: o desaparecimento tanto da indígena Meme, quanto de sua descendência. “Dijo que Meme se había ido, eso era todo”.

A técnica do dado oculto

Outro recurso utilizado por García Márquez na sua narrativa é a técnica do dado oculto, para se referir à descendência indígena. O silêncio momentâneo ou definitivo com relação a alguns dados históricos tem o objetivo de enfatizar a força da narrativa literária. Senão atentemos para uma conversa entre o coronel e o médico que havia assassinado a sua companheira indígena e enterrado o seu corpo no quintal. “Dígame una cosa, doctor: ¿Qué fue de la criatura? El no modificó la expresión: ¿Qué criatura, coronel?”, “Tiene razón, coronel. Hasta me había olvidado de eso.”

Além de Isabel e de seu filho, caracterizam a estrutura ideológica os quatro camponeses submetidos ao coronel a condições subumanas. Este os considera sua propriedade, os vê como “mis hombres”, para Isabel são “animales amaestrados en un circo”, para o neto do coronel “quatro cuervos en un caballete”.

O neto do coronel faz um relato que fala de si mesmo

O relato feito pelo neto do coronel chama muito a atenção do leitor. A narrativa do romance começa e termina com a fala do menino. Isto é sintomático, pois, o menino, exatamente por sua pouca idade, não conhece os ingredientes significativos da realidade que ora presencia. De outro lado, os monólogos do coronel e de sua filha Isabel estão sintonizados com os acontecimentos. Provavelmente, a fala do garoto não se relaciona com o médico e sua morte. O sentido e o significado da sua fala pode ser a revelação da formação de Macondo como um povoado novo, um povoado caribenho em construção.

Nesta linha de raciocínio, os monólogos do filho de Isabel com certeza podem ser entendidos como a representação de uma descoberta. “Por primera vez he visto un cadáver. Es miércoles, pero siento como si fuera domingo porque no he ido a la escuela y me han puesto este vestido de pana verde que me aprieta en alguna parte”. E continuou: “He pasado frente al espejo de la sala y me he visto de cuerpo entero” e concluiu: “…Y he pensado: ese soy yo, como si hoy fuera domingo”. Tudo sinaliza para a hipótese de ser o garoto símbolo do Macondo na sua fase fundacional. Um povoado sem raízes no passado, sem consciência de sua contemporaneidade e de seu futuro. Da mesma forma, o menino fazia então as suas descobertas, ainda distante da vida de adulto.

Não há dúvidas de que o relato existencial está presente nos monólogos do neto do coronel. Segundo biógrafos, García Márquez está ligado ao itinerário heidegeriano do existencialismo ateu. E a presença deste tipo de relato está associada ao centralismo vivido pela Colômbia na década de 1940.

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Autor: Prof. Dr. Dinair Andrade da Silva

O texto deste post foi elaborado com base no conhecimento adquirido durante os cursos “Leer a Macondo: la obra de Gabriel García Márquez” e “Gabriel García Márquez entre el poder, la historia y el amor” e nas referências bibliográficas acima colocadas.

Como citar este post: SILVA, Dinair Andrade da. Uma análise literária e histórica de La hojarasca – Parte 1. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/uma-analise-literaria-e-historica-de-la-hojarasca-parte-1/. Publicado em: 25/05/2022. Acesso: [informar a data de acesso].

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