Detalhe da capa da coletânea de contos Los funerales de la Mamá Grande, Biblioteca García Márquez, Verticales de Bolsillos. Fonte: Diario Inca. Acesso em: 01/09/2023.
Entusiasmado e contente prossigo com esta sequência de posts, examinando e discutindo Los funerales de la Mamá Grande. A análise desta coletânea de contos será dividida em duas partes. Em um primeiro momento, o objetivo é traçar as linhas estruturais da obra. Na segunda parte, a ênfase centra-se no aprofundamento de alguns aspectos, entre eles as contribuições do diálogo da História com a Literatura.
Convido você a festejar e a pensar o modo como García Márquez vislumbrou a América Latina por meio destes relatos – elemento de ligação não só entre os contos que constituem este trabalho do Autor, como também entre os dois posts em que divido o estudo da coletânea.
Identificando e situando a coletânea no tempo
Trata-se de uma coletânea de pouco mais de 50 páginas, composta por 8 contos de tamanhos muito variados, publicada em Buenos Aires no ano de 1962, pela Editorial Sudamericana.
A obra inicia com o conto “La siesta del martes” e, os demais seguem nesta sucessão: “Un día de éstos”, “En este pueblo no hay ladrones”, “La prodigiosa tarde de Baltazar”, “La viuda de Montiel”, “Un día después del sábado” e “Rosas artificiales”.
Por fim, é apresentado o oitavo conto sob o título “Los funerales de la Mamá Grande”, que emprestou o seu nome à coletânea.
Os contos e os romances
Existe uma intensa e profunda relação entre os contos e os romances na produção literária de García Márquez.
Ler os seus contos é uma forma muito interessante de apreciar a sua narrativa. Antes de qualquer outra reflexão, devo esclarecer que os contos de García Márquez, de um modo geral, são eficientes experimentos ou exercícios de estilo. Eles representam algo como uma organização inicial a ser expandida em trabalhos posteriores.
Portanto, confrontemos estes dois gêneros literários: o conto e o romance. O primeiro apresenta cenas, personagens, gradações, modulações etc. O segundo desenvolve, expande, detalha e amplia estes elementos.
Senão vejamos. No romance Cem anos de solidão, publicado em 1967, encontram-se, de forma magnificamente elaborada, elementos identificados na coletânea de contos intitulada Los funerales de la Mamá Grande, que veio a lume em 1962.
Um outro exemplo pode ser depreendido do confronto entre o romance El otoño del patriarca, 1975, com a coletânea de contos La increíble y triste historia de la cándida Eréndira, 1972.
Ressalvo, entretanto, que essa constatação não sugere que os contos representam um gênero literário menor ou inferior aos romances. Muito pelo contrário, demonstra apenas, que García Márquez os utiliza como um locus, desde o qual efetua os seus experimentos literários. É, exatamente nesta linha de raciocínio, que se situa a grande importância dos contos na sua obra.
Linguagem e estrutura do conto em García Márquez: a unidade e a intensidade
No âmbito da linguagem e da estrutura do conto, o Autor chegou a teorizar sobre este gênero literário em um breve artigo, publicado em 2000, que traz como título “¿Todo cuento es un cuento chino?”.
Deste artigo se depreende, na compreensão do Autor, que este gênero literário é inerente à humanidade. Em outras palavras, é próprio do homem contar histórias, desde os tempos imemoriais.
Para ele, as características fundamentais do conto são a unidade e a intensidade. Estas características levam o leitor a tomar uma atitude ativa diante da história que está lendo, ou seja, diante do conto.
De certa forma, o leitor torna-se um coautor, porque tem que imaginar o que precede e o que se segue. Em outros termos, o leitor cria a cena (ou as cenas) que vem antes e a cena (ou as cenas) que vem depois do que está sendo lido.
Este gênero é por natureza conciso. E a história narrada deve ser muito concreta. Portanto, diferente do romance que deve conter uma narrativa minuciosa da trama por inteiro. Neste caso, caberá ao leitor, de certa forma, organizar e categorizar estes múltiplos conteúdos.
As funções do espaço público e do espaço privado em García Márquez
Volto a enfatizar que, costumeiramente, os contos de García Márquez devem ser examinados como experimentos. Laboratórios. Desenvolvimentos mentais diferentes. Distintas vozes narrativas. Local onde são testados personagens, cenas e tramas, que serão desenvolvidos na criação dos seus romances.
Pintura de Gabriel García Márquez em um muro na cidade de Cartagena de Indias. Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em: 01/09/23.
Pois bem. É nesta perspectiva que se colocam as funções do espaço público e do espaço privado nos seus contos. Trata-se de uma testagem do aspecto espacial no relato ou narrativa. Atrevo-me a dizer que o Autor experimenta a maneira pela qual os personagens se movimentam e se articulam na geografia do conto.
Geografia entendida aqui no seu mais amplo conceito, incluindo relevos, climas, rios, mares, regimes das chuvas, desertos, vias de comunicação, meios de transportes, habitações etc.
Tomemos, por exemplo, o conto “Los funerales de la Mamá Grande”. Nele encontram-se as duas realidades espaciais. De um lado, os espaços fechados; e, de outro, os espaços abertos. Em cada qual, uma tipologia de ações, de movimentos, de tramas e de personagens.
Os espaços privados estão relacionados aos interiores em geral e, especialmente, das residências, onde se estruturam a vida familiar. Já os espaços públicos, estão vinculados à vida política e às atividades sociais.
Interessa ao Autor experimentar a maneira pela qual os personagens residem, transformam e transitam por entre estes dois espaços. Uma mostra de espaços privados: quarto da “Mamá Grande”, interior de igrejas, consultórios de médicos e de dentistas. Como espaços públicos: ruas, praças, cemitérios, mercados e feiras.
O Autor e esta obra
Los funerales de la Mamá Grande reúne, como já disse, oito contos do mestre do realismo mágico. A ambiência destes escritos revela todo o simbolismo de Macondo, povoado imaginário, localizado em algum ponto da geografia do Caribe colombiano.
Todos os elementos contidos em Macondo podem ser identificados nas flores que a mãe trazia para depositar na sepultura do filho ladrão, assassinado; no episódio pavoroso no consultório do dentista prático que, sem anestesia, extrai o molar infeccionado de um dos homens mais influentes do povoado; no assalto ao bar de Dom Roque, dando sumiço às bolas de bilhar; na generosidade de Baltazar, presenteando o garoto Pepe com “la jaula más bella del mundo”; na tristeza e no abandono da viúva de Montiel, que acreditava que seu marido tinha sido um “santo moderno”; na inexplicável morte dos pássaros, atribuída ao demônio pelo pároco do povoado; na hostilização de Mina à sua avó cega, ao segredar o real motivo de não ter ido à missa na primeira sexta-feira da quaresma; e, por último, os espalhafatosos funerais da empoderada “Mamá Grande”, prestigiados não somente pela presença do Presidente da República, como também, pela presença de sua Santidade, o Sumo Pontífice.
Nestes contos que compõem a obra, vê-se uma mescla de dois elementos distintos: o fantástico e o vulgar. Por um lado, pode-se dizer que esta coletânea representa, de algum modo, uma viagem do Autor a Aracataca dos seus tempos de criança; por outro, o seu olhar de discordância, de reprovação e de censura, sobre a dura realidade social vivida pela maior parte da população da Colômbia, em particular, e da América Latina, em geral.
Os relatos contidos nesta coletânea integram um processo de criação literária, que culminará na sua plenitude, como dito anteriormente, no romance Cem anos de solidão. Ambientados em Macondo, como também o romance, estas oito histórias estão perfeitamente relacionadas de maneira intertextual, pois, dialogam entre si.
Nesta perspectiva, os personagens vão se alternando: ora são centrais num relato, ora são secundários em outro. De modo semelhante, ocorre com as narrativas: quer complexas e centrais num conto, quer esboçadas e secundárias em outro. O mesmo procedimento é encontrado com relação a alguns temas.
La hojarasca em “La siesta del martes”
Já no primeiro conto da coletânea Los funerales de la Mamá Grande, “La siesta del martes”, percebe-se a intertextualidade que permeia toda a obra de Garcia Márquez. Alguns dos elementos deste conto estão presentes em La hojarasca.
“La siesta del martes” relata a história de duas mulheres pobres e enlutadas – a mãe e sua filha de 12 anos, que desembarcam de um vagão de terceira classe, ao meio-dia, sob um sol escaldante, num povoado que, àquela hora, parecia deserto, para visitar a sepultura do filho e irmão assassinado na semana anterior.
O trem que as transportaram, percorrendo extensíssimas plantações de bananas, pertencentes à companhia bananeira norte-americana, instalada na região, parou na estação. Elas traziam uma bolsa com comida e algumas flores enroladas num jornal.
Dirigiram-se à casa paroquial para apanhar com o pároco a chave do portão do cemitério. O pároco informou à mãe que seu filho foi assassinado por ser ladrão. A certa altura perguntou: — “¿Nunca trató de hacerlo entrar por el buen camino?”
Houve ali uma interessante confrontação. De um lado o pároco, autoridade nas leis humanas e nas leis divinas; do outro, a mãe afetuosa: — “Era un hombre muy bueno”, disse. A mãe de Carlos Centeno Ayala era uma senhora confiante e segura. A sua fala tranquila revelava a sua tenacidade.
A população de Macondo, desconfiada, impaciente e encalorada, quer saber quem são estas duas mulheres que se dirigem ao cemitério, a que vieram e a relação delas com o morto sepultado a pouco.
Em conclusão, diríamos que “La siesta del martes” termina no momento de calor insuportável. Num ambiente, em que os habitantes de Macondo rendiam-se diante de um estado mórbido de torpor, decorrente da intensa e prolongada ação dos raios solares sobre o povoado.
Talvez, esta seja a circunstância que fez com que o Autor deixasse suspenso o final do relato. Exatamente no instante da mais intensa tensão narrativa. Colocou o problema ético diante do leitor e de sua consciência.
“Un día de éstos” na Guerra Civil Colombiana de 1946 a 1958
O conto está situado no tempo denominado pela historiografia como “período de violência” vivido pelos colombianos, durante a Guerra Civil de 1946 a 1958. Esta guerra foi uma disputa política sangrenta, entre apoiadores do Partido Liberal e apoiadores do Partido Conservador. O assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, político liberal, marcou o início das desordens sociais conhecidas como “Bogotazo”, em 1948.
Bonde em chamas em frente ao Capitólio Nacional onde acontecia a IX Conferência Pan-Americana, durante o Bogotazo. Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em: 01/09/23.
O conto é um relato breve. Com menos de mil palavras. Produzido no descrever da violência exacerbada, do poder autoritário, da corrupção deliberada e da selvageria política. Em tela, o ódio contra a autoridade política tirana, corrupta e assassina. Está ambientado em Macondo.
Ocorre ali uma inversão da balança de poder. O poderoso alcaide se submete ao dentista prático Aurelio Escovar, seu adversário político, para que lhe fosse extraído um molar infeccionado.
Tudo aconteceu numa manhã de segunda-feira do ano 1962. Os personagens centrais trasitavam em um espaço privado: o modestíssimo consultório dentário de Dom Aurelio. Ambiente pequeno. Lá estava a velha cadeira de madeira, onde o paciente se assentava para que fossem efetuados os procedimentos. Ao lado, o equipamento, onde uma broca de metal movia-se ao compasso do pé do dentista no pedal.
Em princípio, o profissional resiste em atender o alcaide. Entretanto, prevaleceu a compaixão diante do sofrimento do paciente, contrapondo-se à impiedade do político, sempre indiferente ao sofrimento da população.
O texto exterioriza a ironia do Autor, que expõe o escárnio e, ao mesmo tempo, a sua preocupação com as atrocidades que se encontram presentes no seu país.
“En este pueblo no hay ladrones”, mas há racismo estrutural
A única diversão dos habitantes de um pequeno povoado localizado na região caribenha da Colômbia é o bar de Dom Roque com o seu salão de bilhar.
Dámaso, jovem de caráter duvidoso, inexperiente ladrão, não encontrando ali senão alguns centavos, resolveu roubar as bolas do bilhar. No dia seguinte ao roubo, o perspicaz comerciante divulgou que, além das bolas, foram também roubados 200 pesos.
Por certo, o entretenimento dos habitantes foi interrompido. Aquele jovem começa a experimentar então um abatimento de consciência pelo remorso. Casado com uma mulher mais velha que ele, grávida de seis meses, divide com ela as suas apreensões e preocupações.
A um negro, que não vivia no povoado, foi imputada a autoria do crime e a consequente prisão. Como resultado, Dámaso decidiu devolver as bolas. Entretanto, foi surpreendido naquele ato por Dom Roque, que reclamou os 200 pesos. “Usted sabe que no había nada”, disse-lhe Dámaso. Retrucou Dom Roque: “Te los voy a sacar del pellejo, no tanto por ratero como por bruto”.
“La prodigiosa tarde de Baltazar” ao se rebelar contra o poder econômico
O relato revela um carpinteiro-artista, jovem, bondoso e compassivo, que dedica duas semanas de trabalho para construir uma gaiola para pássaros. Depois de pronta, foi considerada “la más bella del mundo”. Em seguida, apresentou-se um médico interessado em adquiri-la. Baltazar, entretanto, recusou-se a vendê-la, posto que estaria reservada para Pepe, uma criança de cerca de doze anos, que a encomendou, sem a anuência do pai.
O carpinteiro levou-a então à casa de Pepe, filho do casal mais rico do povoado, cujo pai Chepe Montiel, homem ganancioso, abjeto e desprezível, não a quis comprar. Aqui verifica-se uma sutil inversão da balança de poder. O carpinteiro, num gesto de compaixão pelo desaponto de Pepe, presenteou o garoto, dando-lhe a gaiola. Deste modo, impôs uma dura derrota ao poder econômico, representado por Montiel.
Baltazar entregando a gaiola a Pepe. Fonte: Blog Spirit. Acesso em: 01/09/23.
Baltazar em frente ao salão de bilhar do povoado. Fonte: Blog Spirit. Acesso em: 01/09/23.
Baltazar teve uma atitude adequada para com o médico, não lhe vendendo a gaiola, já comprometida com Pepe. Dom Chepe, humilhado e profundamente irado com aquele desfecho, revelou-se como o menor dos homens.
Mais tarde, Baltazar foi ao salão de bilhar do povoado. Os frequentadores do bar imaginaram que o carpinteiro conseguiu um bom preço pelo seu trabalho. Naquele local, permaneceu até a madrugada embriagando-se pela primeira vez na vida, e gastando todo o seu dinheiro. O dia amanheceu, revelando Baltazar dormindo na rua, aparentemente morto.
“La viuda de Montiel” no isolamento e solidão
Esta história, ocorrida entre 1951 e 1952, revela o infortúnio da viúva de José Montiel, apelidado de Dom Chepe, o mais rico dos homens de Macondo. Aquele poderoso que se recusou a comprar para o seu filho a gaiola para pássaro feita por Baltazar.
A trajetória de vida de Montiel – da extrema pobreza à incalculável riqueza – ocorreu de forma apoteótica. Neste breve percurso, a existência de muitos elementos deploráveis se fizera presentes na vida deste grande proprietário. Entre eles, a violência, o terror e a traição, próprios de uma sociedade corrupta e desprovida de valores morais.
A grande fortuna de Montiel foi uma decorrência natural de sua associação com o alcaide, que o levou a cometer inúmeros assassinatos e esbulhos de áreas rurais de muitas pessoas pobres da região. Dom Chepe foi muito odiado por todos. Por esta razão, os habitantes do povoado se sentiram vingados com a sua morte.
A sua mulher, ingênua e inocente, por amá-lo perdidamente, não só não enxergava os seus crimes, como também possuía muito poucas informações a respeito de sua conduta. Para ela, ele foi um “santo moderno”.
Progressivamente, ela foi perdendo boa parte dos bens possuídos pelo casal. Os filhos que viviam na Europa, temendo represálias, não retornaram a Macondo. Ninguém compreendia o sofrimento dela, tomando-a como uma louca. A viúva, abandonada por todos, não tardou a morrer de tristeza e solidão.
A lucidez nas alucinações do Padre Antonio Isabel em “Un día después del sábado”
O relato aborda a ocorrência inexplicável da morte de pássaros. Eles caíam mortos por todos os lugares. O vigário do povoado, não encontrando uma forma de explicar o que acontecia, atribuiu tudo aquilo ao demônio.
A história, como todas as outras da coletânea, se desenvolve em Macondo. Tem como protagonistas diversos personagens. Para o leitor, o propósito da narrativa não fica muito claro. Ela está relacionada ao tempo em que ocorrem as temperaturas mais elevadas na região.
Com certeza, as características climáticas explicam a morte dos pássaros que, desorientados, invadem espaços privados em busca de temperaturas mais amenas.
Assim, neste contexto infernal, de viés escatológico, é que transita o pároco do povoado, com 94 anos, com clara síndrome de demência, considerado o protagonista central. O Padre Antonio Isabel del Santísimo Sacramento del Altar Castañeda y Montero era tido como um bom sacerdote, pacífico e muito sereno.
A idade avançada, provocando-lhe um forte declínio cognitivo, com agudas alterações emocionais e comportamentais, foi desfazendo o seu antigo prestígio diante dos seus paroquianos. Fora dos seus momentos de lucidez, por inúmeras vezes, asseverou ter visto o demônio. Numa de suas crises de alucinação, viu Aasvero, o “judeu errante”, personagem mítico, mencionado pela tradição oral da Igreja Católica.
No desenrolar da trama, ocorre um fato incomum. Um rapaz, aproveitando a parada do trem na estação do povoado, desce para comer alguma coisa e, descuidando-se da hora, perde o trem que partiu. Não lhe restou opção senão a de pernoitar ali, para sua tristeza e desgosto.
No dia subsequente, domingo, o rapaz desconhecido vai à missa. O pároco, olhando na direção da porta principal, fazendo o seu sermão sobre o fim do mundo, o vê entrando transfigurado na pessoa do “judeu errante” da sua alucinação. Os paroquianos ficam estarrecidos.
A celebração do ato religioso prossegue. O Padre Antonio Isabel, num momento de lucidez, ordena ao coroinha que levantasse uma coleta entre os presentes e a entregasse ao forasteiro para que ele pudesse seguir viagem. Na compreensão do Autor, o velho pároco pôs de lado as suas falas piedosas e praticou a justiça social, ajudando a um rapaz pobre.
“Rosas artificiales”: para além do que os olhos podem ver
Este breve conto, escrito em 1961, descreve de um lado, a possível amargura e azedume de uma jovem que teria sido abandonada por seu namorado; e, do outro, a sabedoria e o entendimento da avó cega, que compreendia os sentimentos da neta, por meio de suas atitudes e palavras.
A característica significativa desta história é a utilização da teoria do dado escondido, também denominada teoria do iceberg, muito utilizada por Hemingway. O Autor oculta elementos significativos, não confirmando nada relevante. Caberá ao leitor levantar possíveis hipóteses explicativas.
Vejam algumas suspeitas dentre outras. O que realmente está acontecendo com a jovem? Por que permaneceu tão pouco tempo na missa? Por quais razões desfaz de cartas no banheiro, ao regressar inesperadamente da igreja? Quem escreveu tais cartas? Seriam respostas das que escrevia sempre à noite, com a baixa luminosidade do quarto?
A neta não foi à missa com a justificativa de que a sua avó não havia preparado os seus trajes. Razão pela qual manifestou excessiva agressividade para com a avó cega. Todavia, esta percebeu que a ausência à missa teria outra motivação.
As atitudes de Mina escondiam um segredo. A ida à missa seria apenas pretexto para encontros amorosos, que não mais aconteceriam? A sua atitude ríspida para com a avó não se comparava com as maravilhosas rosas artificiais que ela e sua amiga confeccionavam.
No seu quarto, destrancou uma gaveta de onde retirou uma pequena caixa, e dela, algumas cartas. Dirigiu-se novamente ao banheiro.
Mina havia se comprometido a fazer 150 dúzias de rosas, destinadas às festividades pascais. Trinidad, sua amiga, chega, e logo ao entrar, indaga sobre a sua ausência à Santa Missa. A moça reportou às mangas molhadas do seu vestido e à sua avó, e disse: “Que se fue”.
As duas amigas conversaram e fizeram rosas na sala. Quando Trinidad se foi, a avó quis saber o que Mina guardava na caixa e o motivo do retorno e de tanta demora no banheiro naquela manhã. Muito irritada, a neta disse: “fui a cagar”. Pela resposta vulgar e grosseira, a avó compreendeu que mentia.
O pensamento decolonial em “Los funerales de la Mamá Grande”
Este conto relata a história de um mito de poder ilimitado, representado pela matriarca da região de Macondo. Trata-se de María del Rosario Castañeda y Montero, “La Mamá Grande”. Na sua essência, o texto descreve a agonia e o apoteótico sepultamento desta senhora de 92 anos de idade, cuja morte provocou enorme comoção nacional.
Por meio deste relato, o Autor inova a maneira de criticar os grandes proprietários e as lideranças políticas tradicionais, sem nenhum desgaste ou violência no ataque direto. Para tanto, serviu-se do exagero e da deformação ao tratar a realidade que soube tão bem ridicularizar. Junto à morta foram sepultados os seus pertences “antes de que tengan tiempo de llegar los historiadores”. Na compreensão do Autor, estes produzem a história oficial, que ele tanto abominou, execrou e detestou ao longo de toda a sua vida…
O relato do Autor reconstitui uma sociedade tradicional, com inequívocos e persistentes traços coloniais. Explicita, no seu desenrolar, os principais costumes e a maneira pela qual a religião católica influenciava os rumos daquela sociedade matriarcal. O poder absoluto de “Mamá Grande” refletiu tanto na esfera pública quanto na esfera privada, familiar.
A natureza dotou “Mamá Grande” com o dom da amamentação, mas, paradoxalmente, ela nunca teve filhos. Foi agraciada, no entanto, com nove sobrinhos que preservaram o patrimônio da matriarca, com uma sequência de relações matrimoniais endogâmicas e incestuosas.
A América Latina revisitada na coletânea
O que tentarei fazer nesta seção, ainda que de modo esquemático, é depreender deste conjunto de contos as distintas formas e as múltiplas estruturas da vida e do modo de viver daquela gente, recriados por García Márquez, em cada uma de suas histórias.
Reitero que todos os oito contos que integram a coletânea têm como ambiente Macondo, o pequeno e imaginário povoado de clima excessivamente quente, localizado na zona tórrida, ao noroeste da América do Sul.
Cada conto tem dimensão, consistência e densidade próprias. Todos, sem exceção, representam uma joia da literatura latino-americana. Os relatos, magnificamente escritos, são alimentados por uma prosa e uma musicalidade muito vivas. Os diálogos entre os personagens são claros, concisos e, sobretudo, vigorosos e realistas.
O tema da injustiça, que perpassa toda a sociedade, é ressaltado de maneira muito clara e com muita veemência. É interessante atentar que as causas das injustiças são consideradas e quase sempre o narrador chega a tomar partido da situação.
De alguma forma, cada relato estabelece um confronto entre dois segmentos sociais: de um lado os despossuídos, que é a maioria da população do povoado; e, do outro, os grandes e ricos proprietários e as autoridades, que são, por eles, manipuladas. A leitura dos contos permite entender de que fica sobre este segmento social a culpa pela miséria e a escassez econômica da população em geral.
A despeito do posicionamento religioso do Autor, os seus relatos não sugerem nenhum tipo de animosidade ou agressividade para com a Igreja Católica. Todavia, fica claro, nas entrelinhas, que seria muito bem-vinda a prática da bondade e da ajuda material aos necessitados. Em outras palavras, da forma em que se encontra – inoperante e desgastada – a instituição religiosa perdeu a sua finalidade.
Vale ressaltar a reverência e o apreço a certos personagens como, por exemplo, dentistas e médicos, que prestam algum auxílio aos que pouco ou nada possuem e vivem uma vida de isolamento e limitação material.
Dos escritos, não se depreende um simples gesto de grandeza por parte dos grandes proprietários e das autoridades. Talvez, isso venha a explicar o tom pessimista da narrativa. O que aflora nas descrições é um oceano de infelicidade, de tristeza, de escassez e de desânimo.
Os instantes de felicidade, contentamento e otimismo são raríssimos e de curtíssima duração. Os vícios e as virtudes do despossuído são sempre revelados sob a forma de repulsa, recusa ou negação. Observe o que se deu com Dámaso, jovem e inexperiente ladrão; e o que aconteceu com Baltazar, habilidoso e solidário carpinteiro.
Ademais, cada conto se desenvolve em torno de alguma modalidade, quase sempre grave, de injustiça. Desta forma, a leitura do conjunto leva à compreensão das distorções existentes no mundo social de Macondo. E no quadro do realismo mágico construído pelo Autor, aquele povoado, transcendendo a Aracataca, do Departamento de Magdalena na Colômbia, se transforma, com todo vigor, na América Latina que vai além da primeira metade do século XX.
Na última história – “Los funerales de la Mamá Grande”, ainda no quadro do realismo mágico garciamarqueano, vislumbra-se um divisor de águas: o encerramento dos tempos de dominação e exploração e o surgimento de um tempo novo, que se caracterizaria pela justiça social.
Na segunda parte deste post, analisarei um pouco mais pormenorizadamente dois – o primeiro e o último – dos oito contos que integram esta coleção. “La siesta del martes”, que conta a história de uma mãe que, acompanhada de sua filha pequena, se desloca a um povoado remoto, para visitar a sepultura do filho assassinado. E, na sequência, examinarei o conto que empresta o seu nome à coletânea, que traz como título “Los funerales de la Mamá Grande”, que relata a morte e o sepultamento de uma mulher que exercia poder absoluto sobre a extensa região onde Macondo está inserido. A ideia é continuar ressaltando as contribuições valiosas originadas do diálogo entre a História e a Literatura.
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Autor: Prof. Dr. Dinair Andrade da Silva
O texto deste post foi elaborado com base no conhecimento adquirido durante os cursos “Leer a Macondo: la obra de Gabriel García Márquez” e “Gabriel García Márquez entre el poder, la historia y el amor” ministrados por um conjunto de especialistas da Universidad de los Andes, com sede em Bogotá, e nas referências bibliográficas acima colocadas.
Como citar este post: SILVA, Dinair Andrade da. Uma análise literária e histórica de Los funerales de la Mamá Grande – Parte 1. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/uma-analise-literaria-e-historica-de-los-funerales-de-la-mama-grande-parte-1/. Publicado em: 25/09/2023. Acesso: [informar a data de acesso].
Atenção: Por favor, reporte possíveis equívocos escrevendo para: ola@historiasdasamericas.com
Que texto rico, professor Dinair. Muito obrigada por compartilhar!
Fico feliz com seu interesse! A segunda parte deste post sairá em breve! Fique ligada!