Gallos de pelea en la Palma, Armand Reclus, sem data.
Fonte: Banco de la República. Acesso em: 21/07/2022.

Com alegria dou prosseguimento a esta sequência de posts, analisando e discutindo o romance El coronel no tiene quien le escriba. Convido você a celebrar e a deliciar o modo pelo qual García Márquez contemplou a América Latina por meio desta obra. De maneira especial, ressalto os valores e os princípios que identificam o coronel, personagem central deste laureado trabalho do Autor.

Considerações preliminares

El coronel no tiene quien le escriba é um romance breve, que narra a saga de um coronel torturado pelo esquecimento e pelo desdém, que vive com a sua mulher num povoado da costa norte da Colômbia, numa casa modesta. Espera por uma pensão do Estado, a que julga ter direito, pelos trabalhos prestados ao seu país.

Revolucionário, liberal e veterano da Última Guerra Civil, lutou sob as ordens imediatas do coronel Aureliano Buendía. A historiografia colombiana denominou este conflito como Guerra dos Mil Dias, entre 1899 e 1902. Esta participação é o fundamento do seu pedido de pensão.

Jorge Eliécer Gaitán, Líder do Partido Liberal. Fonte: Biblioteca Nacional de Colombia. Acesso em: 21/07/2022.

Por outro lado, o romance está ambientado em uma época da História da Colômbia conhecido como “Período da Violência”, situado entre 1946 e 1958.

Pareceu-me pertinente, portanto, trazer ao conhecimento do leitor – do post e do romance – algumas reflexões sobre estes dois momentos da história colombiana, com o objetivo de aclarar questões de natureza factual.

O autor e esta obra

El coronel no tiene quien le escriba foi concluído em Paris, em janeiro de 1957, quando da permanência de García Márquez ali como correspondente de um periódico colombiano.

Chegou na França em meados da década de 1950, trazendo também consigo a intenção de estudar cinema.

O romance foi estruturado em sete capítulos, escrito na terceira pessoa, ou seja, o narrador não participa da história narrada, apenas a narra.

Com a falência do periódico onde trabalhava, García Márquez enfrentou muitas dificuldades financeiras. O romance foi recusado para publicação por vários editores. Finalmente, foi publicado em 1961.

Coronel do Exército da Colômbia é o personagem protagonista do romance. Os demais personagens, por sua vez, contribuem para consolidar o perfil do militar como um homem sentimentalmente preso às suas convicções, aos seus preceitos mais íntimos, como o convencimento de que é merecedor do reconhecimento por parte do Estado, em razão de sua atuação na última guerra civil.

A história envolve uma situação de extrema escassez econômica, vivida pelo coronel e sua mulher. Esta escassez extrema tornou-se ainda mais aguda em decorrência do assassinato do filho do coronel, Agustín, há alguns meses.

Esta situação extrema poderá ser amenizada ou solucionada, desde que haja a conjugação de duas variáveis. Primeira, a concessão, pelo Estado, de uma pensão vitalícia ao coronel, pelos serviços prestados ao seu país. A outra, menos segura, a vitória do galo nas rinhas de janeiro, produzindo algum ganho.

A escassez em que vive, forçou o coronel a vender alguns dos seus poucos pertences para manter a sobrevivência familiar. Entre estes, desfez-se da máquina de costura de sua mulher.

Este coronel, nada de diferente fez nos últimos 56 anos de sua vida, senão esperar. A situação de violência vivida pelo país o impede de ser produtivo. Além disso, os seus companheiros de partido foram expulsos, perseguidos ou mortos.

Paciente e disciplinado não agia com precipitação: “—Siga mi consejo, compadre —dijo don Sabas—. Venda ese gallo antes que sea demasiado tarde. —Nunca es demasiado tarde para nada —dijo el coronel.”

Por certo, o itinerário habitual do coronel era singelo e melancólico: o escritório do advogado, a alfaiataria, o consultório médico, a administração dos correios, as rinhas (espécie de ringues onde se realizam as brigas de galos)…

A despeito de todas as dificuldades, não perdia o controle de si mesmo. Em novembro, não estava bem de saúde. Acreditava que suas vísceras estivessem apodrecendo. Na sequência, murmurou que era inverno e com tranquilidade disse: “todo será distinto cuando acabe de llover”.

Por outro lado, a vergonha é compartilhada pelo casal que tenta esconder, das pessoas do seu convívio, a situação de miserabilidade em que vivem. Dessa forma, o coronel às vezes mente, e a sua mulher, quase sempre, age dissimuladamente.

A despeito do pragmatismo da sua esposa, o coronel nunca abandonou o seu idealismo e a sua esperança. E a escassez eleva a tensão ao extremo, como se vê neste diálogo entre os dois: “—La ilusión no se come —dijo ella. —No se come, pero alimenta —replicó el coronel—.”

Colômbia – A Guerra dos Mil Dias, 1899-1902

De alguma maneira, o romance está inserido no contexto de um conflito armado ocorrido na Colômbia, entre conservadores e liberais, no período compreendido entre os anos 1899 e 1902. Este acontecimento foi denominado pela historiografia nacional como A Guerra dos Mil Dias. Os conservadores estavam apoiados pelo Exército Nacional. Os liberais, por sua vez, estavam liderados por membros dissidentes do Exército, com a participação de grande número de guerrilheiros.

Precedentes da crise

Como se sabe, no transcurso do século XIX, as distintas áreas nacionais da América Latina, viveram duros embates entre conservadores e liberais. A Colômbia, portanto, não foi uma exceção. Os conservadores colombianos objetivavam a consolidação de um Estado centralizado e forte. Em contrapartida, os liberais pretendiam instalar um regime federalista no país.

A influência da Igreja Católica na Carta Constitucional de 1886. Fonte: Biblioteca Nacional de Colombia. Acesso em: 21/07/2022.

Vale ressaltar também algo que não era incomum na América Latina de então: algum tipo de vinculação entre o Estado e a Igreja Romana. No caso colombiano, foi celebrado um acordo com o Vaticano, a partir da Constituição de 1886, em que se previa a gestão da Igreja nos assuntos educacionais do país. Como era de se esperar, este acordo provocou um intenso desagrado entre os liberais.

No âmbito estritamente político, a Colômbia vivia uma quadra de constante instabilidade. Esta instabilidade permanente, proporcionou o fortalecimento de um clima de confrontação social entre o Partido Conservador e o Partido Liberal. A situação foi agravada em consequência da queda dos preços do café no mercado internacional, verificada em 1899. Àquela altura, a economia conduz o país a patamares insustentáveis. Naquele mesmo ano, em meio a esta crise de enormes proporções, ocorrem as eleições majoritárias. A vitória proclamada ao candidato conservador não foi reconhecida pelos liberais.

A guerra foi desencadeada

Em outubro de 1899, na pequena cidade de Socorro, situada no Departamento de Santander, no interior do país, alguns generais simpáticos ao Partido Liberal se rebelaram. Na sequência, as tropas federais são tomadas de surpresa, dando a impressão de vitória para os liberais. Prosseguiram os ataques. No entanto, no final daquele mês, ocorreu a Batalha do Rio Madalena, onde as tropas conservadoras foram vitoriosas.

No curso do conflito, foram surgindo novas orientações de rumos em ambos os lados. Os liberais, a despeito de obterem algumas vitórias isoladas, foram se arrefecendo militarmente e perdendo força. Esta situação ensejou a sua ruptura em duas vertentes: uma defendia a pacificação do país; e, a outra, o prosseguimento da luta armada. Os conservadores, por seu lado, também passaram por uma fratura: de um lado, os nacionalistas; e, do outro, os históricos.

A Guerra dos Mil Dias transcendeu as fronteiras da Colômbia. De certa maneira tornou-se um conflito interamericano. Liberais e conservadores colombianos, receberam, cada um dos lados, ajuda externa. Enquanto os liberais foram agraciados com a contribuição efetiva dos homólogos nicaraguenses, guatemaltecos, equatorianos e venezuelanos, os conservadores receberam a colaboração dos seus iguais da Venezuela e o apoio dos fuzileiros navais dos Estados Unidos. O conflito terminou em 1902, com a vitória dos conservadores.

…E o coronel, protagonista do romance de García Márquez, pertenceu às fileiras dos liberais e
lutou bravamente sob o comando do coronel Aureliano Buendía…

Consequências da guerra

Entre colombianos e estrangeiros participantes, perdeu-se em torno de cem mil combatentes. O período pós-guerra caracterizou-se por seguidas crises econômicas.

A Guerra dos Mil Dias tornou-se um conflito interamericano.
Fonte: Biblioteca Nacional de Colombia. Acesso em: 21/07/2022.

O Panamá, que integrava o território colombiano, no ano seguinte, em 1903, tornou-se um Estado independente graças aos interesses dos Estados Unidos pela região onde seria construído o canal interoceânico.

Apresentação do romance

Uma das questões mais interessantes de se estudar neste romance é a sua linguagem, que pode ser caracterizada pela simplicidade. O texto parece ter sido construído com muita naturalidade e desenvoltura. E a sua leitura, nos leva a valorizar alguns objetos de grande valor simbólico, que evocam situações vividas.

Outrossim, é fundamental que atentemos para a análise do ritmo da prosa, que pode ser percebido quando do encontro entre o coronel e o assassino do seu filho, numa cena de muita intensidade.

Deve ser considerada ainda, a forma densa como o ator central foi apresentado; e, sobretudo, a compaixão do Autor pela história deste personagem.

Além disso, destaca-se que a violência nesta obra aparece apenas sub-repticiamente. García  Márquez não a relatou de forma explícita.

Em suma, tanto esta quanto outras produções literárias se caracterizam pela polissemia. Múltiplas análises poderão emergir deste trabalho do Autor.

Personagens do romance

O Coronel

Personagem mais importante. Seu nome não é conhecido. Idoso. Liberal. Idealista. Ingênuo. Triste figura que se dirige à agência dos correios do porto todas às sextas-feiras, dia em que o barco traz as correspondências e as encomendas. Acredita nas instituições públicas. E espera por uma carta de concessão da pensão vitalícia.

A mulher do coronel

Senhora também idosa. Pragmática. Enérgica. Asmática. O seu nome é desconhecido. Consciente das dificuldades enfrentadas pelo seu marido. Propõe vender os poucos objetos que o casal possui. Tenta esconder a real escassez vivida por eles. Ferve pedras para que os vizinhos pensem que ela está cozinhando.

O galo

Pertencia a Agustín. Filho falecido do coronel. Trata-se de um galo de rinha referenciado como o melhor da província.

O Doutor

Médico. Homem solidário, cujo nome é desconhecido. Ligado ao Partido Liberal. Assistia a mulher do coronel na sua enfermidade. Integrava a rede de informação da clandestinidade, por onde se conheciam os verdadeiros fatos que ocorriam no país e no exterior.

Don Sabas

Homem já velho e rico. Pequena estatura. Obeso. Diabético. O único dirigente do seu partido que não sofreu represálias políticas. Padrinho de Agustín. Compadre do coronel.

Esposa de Don Sabas

O seu nome não é mencionado. Possuía boa relação de amizade com o coronel e sua mulher. Mantinha um constante diálogo com o casal de amigos.

Agustín

Filho do coronel. Jovem de pouca idade. Agia na clandestinidade, difundindo informações. Não soube avaliar os riscos de sua atividade. Foi morto pela repressão policial, no local onde se reuniam para as brigas de galo.

Germán

Conhecido do coronel. Amigo de Agustín. Com outros companheiros, cuidava da manutenção do galo, para as brigas de galo de janeiro.

O advogado

O relato insinua que se tratava de um profissional incompetente. Possuía grande estatura. Negro. Encarregado dos trâmites do pleito do coronel relacionado a obtenção de sua pensão. Situa-se entre os personagens cujo nome não se revelou.

Agente dos correios

O seu nome é desconhecido. Trabalhava na agência do porto, por onde deveria chegar a correspondência do coronel.

Álvaro

Pessoa que fazia pequenos negócios. Comprou a máquina de costura do coronel. Manifestou interesse também pela compra do relógio.

O sírio Moisés

Proprietário de um bazar localizado nas proximidades do porto.

O alcaide

Autoridade máxima do município. Algumas vezes, agia de forma arbitrária.

Mulheres do funeral

Manifestaram muita tristeza e pesar em razão da amizade que tinham pelo falecido amigo do coronel.

Meninos do povoado

Alegravam com suas brincadeiras o cotidiano difícil vivido pela família do coronel. Geralmente, reuniam-se no pátio localizado nos fundos do quintal da casa do militar.

O padre Ángel

Responsável pelas celebrações dominicais e demais atividades religiosas previstas no calendário litúrgico. Controlava a prática dos costumes.

Aureliano Buendía

Coronel do Exército colombiano. Homem influente. Aparece em outros escritos de García Márquez.

Linhas estruturais do romance

É muito curioso observar que o título e o primeiro parágrafo do romance abarcam, de certa forma, os temas e as preocupações que serão expandidas ao longo do texto. Sinteticamente, eu diria que o isolamento e a precariedade econômica marcaram o compasso da narrativa. E em consequência, estes dois elementos delinearam o caráter moral e ético do protagonista.

“El coronel destapó el tarro del café y comprobó que no había más de una cucharadita. Retiró la olla del fogón, vertió la mitad del agua en el piso de tierra, y con un cuchillo raspó el interior del tarro sobre la olla hasta cuando se desprendieron las últimas raspaduras del polvo de café revueltas con óxido de lata.”

O primeiro parágrafo revela, portanto, um conflito ético da maior relevância. Trata-se de um coronel, com grandes serviços prestados à Pátria. Membro de uma instituição de Estado, rigidamente hierarquizada, e ele, detentor de uma patente que o colocaria em posição privilegiada nesta hierarquia. Nesta linha de raciocínio, em tese, não poderia estar isolado, vivendo num contexto de tamanha precariedade material.

O texto citado de García Márquez é uma belíssima imagem que identifica a condição de escassez material e a nobreza da índole do coronel diante desta precariedade. Além disso, como mencionei, ele está isolado, vivendo num povoado, sem ter quem lhe escreva.

A imagem revelada pela citação acima, gera enorme impacto quando, na sequência do relato, tomamos conhecimento de que o coronel está preparando o café da manhã para levar à sua esposa acamada, que não teve descanso durante a noite, em decorrência dos seus ataques de asma. E o que tem a oferecê-la é tão-somente uma changuana de café com óxido de lata.

“Período da Violência” na Colômbia

Creio que seja necessário, ainda que esquematicamente, tecer algumas considerações sobre este momento da história colombiana.

Trata-se de um período de intensas agitações políticas e sociais disseminadas especialmente nas áreas rurais, envolvendo apoiadores dos Partidos Liberal e Conservador.

Para alguns historiadores, as hostilidades tiveram início em 1946, quando do retorno dos conservadores ao governo, que sinalizaram para os camponeses invadirem as terras de proprietários liberais.

Por outra parte, a maioria dos historiadores assinala que a violência teria tido como motivação o assassinato de Jorge Eliércer Gaitán, desencadeando um conjunto de incidentes – linchamentos, depredação de propriedades, assassinatos, terrorismo, perseguições, assaltos – entre liberais e conservadores, que ficou conhecido como Bogotazo, em 1948.

Guerrilla de Eliseo Velásquez, Fernando Botero, 1988.
Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em: 21/07/2022.

Entre os fatores que explicam o prolongamento da violência são citados os temores anticomunistas dos setores dominantes e o sistema político bipartidário. Todavia, em 1957, os Partidos Liberal e Conservador coligaram-se numa Frente Nacional e decidiram apoiar um único candidato presidencial e os cargos e funções oficiais foram igualmente divididos. Desta forma, os colombianos puderam gozar de uma estabilidade política por cerca de 16 anos.

A trama deste romance, com muita probabilidade, está vinculada às questões centrais vividas pela Colômbia e pelos colombianos, inclusive pelo próprio Autor. Tempos de opressão, de escassez e das restrições das liberdades fundamentais. Tempos, portanto, do império do arbítrio e da violência política.

Violência e linguagem

A geografia que envolve este romance é a da violência. Trata-se, conforme resumimos acima, de um período conturbado da história colombiana situado entre 1946 e 1958.

Vítima do abandono, da indiferença e da abstenção, ao longo de toda a narrativa, o coronel enfrenta, subliminarmente, a batida policial, a resistência armada, o toque de recolher, os privilégios de dom Sabas e a censura do padre Ángel. Situações que caracterizam o clima político tenso do povoado.

A citação abaixo, nos dá uma mostra deste período de exceção, quando um espaço festivo do povoado, onde o coronel se encontrava, foi invadido numa batida policial, pelas forças de repressão do governo.

“De pronto se interrumpieron las trompetas del mambo. Los jugadores se dispersaron con las manos en alto. El coronel sintió a sus espaldas el crujido seco, articulado y frío de un fusil al ser montado. Comprendió que había caído fatalmente en una batida de la policía con la hoja clandestina en el bolsillo. Dio media vuelta sin levantar las manos. Y entonces vio de cerca, por la primera vez en su vida, al hombre que disparó contra su hijo. Estaba exactamente frente a él con el cañón del fusil apuntando contra su vientre. Era pequeño, aindiado, de piel curtida, y exhalaba un tufo infantil. El coronel apretó los dientes y apartó suavemente con la punta de los dedos el cañón del fusil. —Permiso —dijo. Se enfrentó a unos pequeños y redondos ojos de murciélago. En un instante se sintió tragado por esos ojos, triturado, digerido e inmediatamente expulsado. —Pase usted, coronel.”

A despeito de haver sido respeitado pelo comando repressor, ficou muito claro o isolamento institucional do coronel e o seu não pertencimento à instituição militar.

Adicionalmente, vale registrar a influência de Ernest Hemingway (1899-1961) presente neste texto de García Márquez. É visível especificamente no que se refere à economia de palavras. Veja, por exemplo, este diálogo entre o coronel e a sua esposa: “El coronel le secó la frente con la sábana. —Nadie se muere en tres meses. —Y mientras tanto qué comemos —preguntó la mujer. —No sé —dijo el coronel—. Pero si nos fuéramos a morir de hambre ya nos hubiéramos muerto.” Parte significativa do universo mental do personagem principal está sintetizado nesta citação.

Por certo, a linguagem e o ritmo da prosa podem ser identificados pelo uso, às vezes alternados, de frases curtas e de frases longas, ensejando algo semelhante a um ritmo musical. Como se vê, a economia de palavras valoriza os espaços de indeterminação e assegura melhor manejo nos diálogos.

Ao tratar a violência, o Autor aplica também a economia de palavras. García Márquez não enumera mortes e massacres. Explicita apenas uma violência que se sente, que é tão-somente sugerida…

Um povoado isolado e o papel da imprensa

O romance não se desenvolve em Macondo. No entanto, este povoado é sempre evocado com a mesma imagem do romance La hojarasca “de la llegada del tren amarillo y polvoriento que traía hombres y mujeres apelotonados entre los vagones.”

Representação de Macondo por Joanna Maciel.
Fonte: Behance. Acesso em: 21/07/2022.

O povoado também aparece vinculado ao lugar onde foram assinados os tratados com Neerlandia, há cinquenta anos, quando tem início a desgraça do coronel. Naquela ocasião, se verificou o encastelamento dos conservadores na administração central do país.

Num dos últimos capítulos do romance, García Márquez escreveu: “Y abandonó a Macondo en el tren de regreso, el miércoles veintisiete de junio de mil novecientos seis a las dos y dieciocho minutos de la tarde. Necesitó medio siglo para darse cuenta de que no había tenido un minuto de sosiego después de la rendición de Neerlandia.”

Creio já tenha ficado claro que em El coronel no tiene quien le escriba, tal qual em La hojarasca, o romance está inserido no cotidiano de um povoado isolado e muito distante de cidades.

Por esta razão, a imprensa adquire um papel relevante, dando destaque ao isolamento. O Autor trabalha a imprensa em dois formatos. Por um lado, a oficial, que não informa de maneira apropriada o que está acontecendo. Por outro, a clandestina, mais prestigiada e mais perigosa, que circula de mão em mão, desde o México, entre os membros da oposição.

Por meio desta é que se tem informação mais segura do que acontece no mundo exterior e no governo central da Colômbia.

Dois objetos de valor simbólico chamam a atenção do leitor

O guarda-chuvas

O guarda-chuvas remete o leitor à unidade da família nuclear do coronel, ainda que agora não mais servisse para nada, pois, o tempo o destruiu…

“Encontró en el baúl un paraguas enorme y antiguo. Lo había ganado la mujer en una tómbola política destinada a recolectar fondos para el partido del coronel. Esa misma noche asistieron a un espectáculo al aire libre que no fue interrumpido a pesar de la lluvia. El coronel, su esposa y su hijo Agustín —que entonces tenía ocho años— presenciaron el espectáculo hasta el final, sentados bajo el paraguas. Ahora Agustín estaba muerto y el forro de raso brillante había sido destruido por las polillas. —Mira en lo que ha quedado nuestro paraguas de payaso de circo —dijo el coronel con una antigua frase suya. Abrió sobre su cabeza un misterioso sistema de varillas metálicas—. Ahora sólo sirve para contar las estrellas. Sonrió. Pero la mujer no se tomó el trabajo de mirar el paraguas. ‘Todo está así’, murmuró. ‘Nos estamos pudriendo vivos’. Y cerró los ojos para pensar más intensamente en el muerto.”

Bem mais adiante, o relato retoma a simbologia do guarda-chuvas. Desta vez numa outra lógica. A da abundância, por parte de dom Sabas.

“Espérese y le presto un paraguas, compadre. Don Sabas abrió un armario empotrado en el muro de la oficina. Descubrió un interior confuso, con botas de montar apelotonadas, estribos y correas y un cubo de aluminio lleno de espuelas de caballero. Colgados en la parte superior, media docena de paraguas y una sombrilla de mujer. El coronel pensó en los destrozos de una catástrofe. ‘Gracias, compadre’, dijo acodado en la ventana. ‘Prefiero esperar a que escampe’. Don Sabas no cerró el armario. Se instaló en el escritorio dentro de la órbita del ventilador eléctrico. Luego extrajo de la gaveta una jeringuilla hipodérmica envuelta en algodones. El coronel contempló los almendros plomizos a través de la lluvia. Era una tarde desierta. —La lluvia es distinta desde esta ventana —dijo—. Es como si estuviera lloviendo en otro pueblo.”

O guarda-chuvas permitiu ao coronel absorto, voltado para os seus próprios pensamentos, um retorno a um tempo passado, que certamente teria sido muito melhor! Por outro lado, como sempre, é a sua mulher que o chama à dura realidade da escassez em que viviam.

O relógio

Este objeto perpassa o relato, aparecendo em distintas partes do romance. Trata-se de um relógio de pêndulo, incrustrado em um móvel de madeira. Periodicamente, o coronel interrompe alguma atividade para dar corda ao relógio.

Ele representa uma espécie de reserva material. Em diversas oportunidades da narrativa, ele está vinculado à possibilidade de ser vendido e, portanto, transformado em recursos para aliviar a escassez da família, enquanto a pensão esperada pelo coronel não chega.

“—Nada de hablar por la mañana —precisó ella—. Le llevas ahora mismo el reloj, se lo pones en la mesa y le dices: ‘Álvaro, aquí le traigo este reloj para que me lo compre’. Él entenderá enseguida. El coronel se sintió desgraciado.”

O coronel sempre procrastinou o quanto possível desfazer-se do relógio.

“Siguió hablando desde el mosquitero. ‘Hace dos días traté de vender el reloj’ , dijo. ‘A nadie le interesa porque están vendiendo a plazos unos relojes modernos con números luminosos. Se puede ver la hora en la oscuridad’.”

Finalmente, concluiu que ninguém se interessaria por ele.

“Ella apareció en la puerta, espectral, iluminada desde abajo por la lámpara casi extinguida. La apagó antes de entrar al mosquitero. Pero siguió hablando. —Vamos a hacer una cosa —la interrumpió el coronel. —Lo único que se puede hacer es vender el gallo —dijo la mujer. —También se puede vender el reloj. —No lo compran.”

Considerações finais

O romance é uma narrativa que leva o leitor a refletir sobre alguns princípios como a esperança, a resignação e a manutenção da dignidade. Esperar pelo que se tem direito e manter a integridade pessoal. Princípios não valorizados por uma sociedade caracterizada pela corrupção, pelo suborno, pela propina, pelo ódio, pelo estelionato e pela vingança. Nesta sociedade, os homens de valor – igual ao coronel – são relegados ao esquecimento e massacrados pela ambição do poder econômico e político de antigos companheiros de luta.

Antes de mais nada, creio ter ficado claro que a escassez é o alicerce sobre o qual o romance foi construído. Num quadro de abundância este romance não existiria. A escassez manifestou-se no galo de rinha, na pensão que nunca vem, no confronto do idealismo do coronel com o pragmatismo de sua esposa e nos corpos do casal que aparentam desnutridos, pálidos, depauperados, magros e macilentos.

Inegavelmente, o coronel permanece ligado aos seus valores e os defende até o final. Está convencido que merece reconhecimento pelos seus serviços prestados à nação. E espera por ele.

O romance termina com um diálogo forte entre o coronel e sua mulher. “La mujer se desesperó. ‘Y mientras tanto qué comemos’, preguntó, y agarró al coronel por el cuello de franela. Lo sacudió con energía. ‘— Dime, qué comemos.’ El coronel necesitó setenta y cinco años — los setenta y cinco años de su vida, minuto a minuto — para llegar a ese instante. Se sintió puro, explícito, invencible, en el momento de responder: ‘—Mierda.’ Provavelmente, explicitou-se aí talvez o único momento de desespero do coronel.

A percepção e o olhar de García Márquez sobre a realidade latino-americana permitiram que ele criasse, com todas as cores e com todo o brilho, em El coronel no tiene quien le escriba, uma história fantástica de violência e de injustiça, tão viva quanto verdadeira.

Finalmente, estou seguro de que este romance é uma das obras mais significativas de García Márquez, não apenas pela profundidade emocional com que apresenta o personagem protagonista, mas também pela simplicidade e musicalidade da sua narrativa.

Referências bibliográficas

ABELLO VIVES, Alberto, et al. Poblamiento y ciudades del Caribe colombiano. Bogotá: Gente Nueva, 2000.
Alfredo Bosi. “A parábola das vanguardas latino-americanas”. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EDUSP/Iluminuras/FAPESP, 1995, p. 19-28.
ALARCÓN, Luis Ernesto Lasso. “El coronel no tiene quien le escriba: aprendizaje tardio”. In: La narrativa de García Márquez: hacia la otra postmodernidad. Bogotá: Samán Editores, 1997, p. 43-57.
ANDERSON, Perry. “Trajetos de uma forma literária”. In: Novos estudos CEBRAP. São Paulo: nº 77, 2007, p. 205-220.
ANDERSON, Thomas F. “La descomposición, la putrefacción y la muerte en El coronel no tiene quien le escriba de Gabriel García Márquez”. In: Hispanófila, nº 130, 2000, p. 69-78.
Ángel Rama. “Un novelista de la violencia americana”. In: GIACOMAN, Helmy F. (coord.). Homenaje a Gabriel García Márquez. Madrid: Anaya, 1972, p. 57-72.
Antônio Cândido. “Literatura y subdesarrollo”. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord.). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972, p. 335-349.
______. “Uma visão latino-americana”. In: CHIAPPINI, Lígia; AGUIAR, Flávio Wolf (orgs.). Literatura e História na América Latina: Seminário Internacional, 9 a 13 de setembro de 1991. São Paulo: EDUSP, 1993, p. 253-262.
AVELLA, Francisco. Del proceso identitario al pensamiento caribe. Universidad Nacional de Colombia, Maestría en Estudios del Caribe, 2001.
BAL, Mieke. Teoría de la narrativa: una introducción a la narratología. Madrid: Cátedra, 1995.
BERND, Zilá (org.). Americanidade e transferências culturais. Porto Alegre: Movimento, 2003.
BLOOM, Harold (ed.). Gabriel García Márquez. New York: Chelsea Books, 1989.
CAMACHO, Álvaro. La Colombia de hoy: sociología y sociedad. Bogotá: Fondo Editorial CEREC, 1986.
CAMELO, Hernando Motato. La parodia de la dictadura: un diálogo con la historia en la narrativa garciamarqueana. Bucaramanga: Universidad Industrial de Santander, 2010.
CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais/ Edições Vértice, 1987.
CEBRIÁN, Juan Luís. Retrato de García Márquez. Barcelona: Círculo de Lectores, 1989.
César Fernandez Moreno “¿Qué es la América Latina?” In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord.). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972, p. 5-18.
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
CROS, Edmond. Literatura, ideología y sociedad. Madrid: Gredos, 1983.
CRUZ, Adolfo León Atehortúa. “El golpe de Rojas y el poder de los militares”. In: Folios. Bogotá: Segunda época, nº 31, 2010, p. 33-48.
CUNHA, Marina P. R. “Memória e representação da Guerra dos Mil Dias nas obras de Gabriel García Márquez”. In: VI Simpósio Nacional de História Cultural. Escritas da História: “Ver”, “Sentir”, “Narrar”, 2012. Disponível em http://gthistoriacultural.com.br/VIsimposio/anais/Marina%20Procopio%20Rodrigues%20da%0Cunha.pdf
Emir Rodríguez Monegal. “Tradición y renovación”. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord.). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972, p. 139-162.
Ernesto Volkening. “Gabriel García Márquez o el trópico desembrujado”. In: GIACOMAN, Helmy F. (coord.). Homenaje a Gabriel García Márquez. Madrid: Anaya, 1972, p. 87-96.
FLO, Julian. “Sobre la ficción (al margen de Gabriel García Márquez)”. In: Repertorio crítico sobre Gabriel García Márquez. Tomo I: Compilación y prólogo de Juan Gustavo Cobo Borda. Serie La Granada Entreabierta. Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1995, p, 247-255.
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
George Robert Coulthard. “La pluralidad cultural”. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord.). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972, p. 53-72.
HOBSBAWN, Eric. Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. BETHELL, Leslie (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
JARDEL, Jean. “La pensée créole des Antilles”. In: Encyclopédie Philosophique Universelle. Tome I, Paris: P.U.F., 1992.
KOOREMAN, Thomas E. “Poetic vision and the creation of character in El coronel no tiene quien le escriba”. In: Romance Notes, vol. 33, nº 3, 1993, p. 271-277.
LUKÁCS, György. “A forma clássica do romance histórico”. In: O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 33-113.
______. Marxismo e Teoria da Literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
MARTÍN, Gerald. Gabriel García Márquez: uma vida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.
MEYER-MINNEMANN, Klaus. “La representación de la ‘Violencia’ en El coronel no tiene quien le escriba y La Mala Hora de Gabriel García Márquez”. In: Repertorio crítico sobre Gabriel García Márquez. Tomo I. Compilación y prólogo de Juan Gustavo Cobo Borda. Serie La Granada Entreabierta. Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1995, p. 261-271.
MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
MORETTI, Franco. “Malformações nacionais: metamorfoses na semiperiferia”. In: O burguês: entre a história e a literatura. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 150-173.
MOUSÉIS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
RAMA, Angel. “García Márquez: la violencia americana”. Originalmente publicado no semanário Marcha (Montevideo), nº 1201, (17 de abril de 1964), p. 22 e 23. Tomado de Nueve asedios a García Márquez. Santiago, Chile: Editorial Universitaria, 1969, p. 106-120. Disponível em http://www.literatura.us/garciamarquez/angelrama.html
______. La narrativa de Gabriel García Márquez: edificación de un arte nacional y popular. Bogotá: Colcultura, 1991.
RODRIGUES, Selma Calasans. Macondoamérica: a paródia em Gabriel Garcia Márquez. Rio de Janeiro: Leviatã Publicações, 1993.
Rubén Bareiro Saguier. “Encuentro de culturas”. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord.). América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI Editores/UNESCO, 1972, p. 21-40.
TERAO, Ryukichi. “El coronel no tiene quien le escriba: la simbolización y el vivir de una realidad violenta”. In: Estudios de Literatura Colombiana. Bogotá: Universidad de Los Andes, Mérida; Tokio: Universidad de Tokio. 12, 2003, enero-junio: p. 71-86.
TRUJILLO, Ricardo Arias. Historia contemporánea de Colombia (1920-2010). Bogotá: Universidad de los Andes, Ediciones Uniandes, 2010.
VARGAS LLOSA, Mario. García Márquez: historia de un deicidio. Barcelona: Barral Editores, 1971.
WALFORD, Lynn. “America as a community of violence in three early novels of Gabriel García Márquez”. In: Hispanófila, nº 119, 1997, p. 31-45.

Autor: Prof. Dr. Dinair Andrade da Silva

O texto deste post foi elaborado com base no conhecimento adquirido durante os cursos “Leer a Macondo: la obra de Gabriel García Márquez” e “Gabriel García Márquez entre el poder, la historia y el amor” e nas referências bibliográficas acima colocadas.

Como citar este post: SILVA, Dinair Andrade da. Uma análise literária e histórica de El coronel no tiene quien le escriba. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/uma-analise-literaria-e-historica-de-el-coronel-no-tiene-quien-le-escriba/. Publicado em: 31/08/2022. Acesso: [informar a data de acesso].

Atenção: Por favor, reporte possíveis equívocos escrevendo para: ola@historiasdasamericas.com