Uma incursão a Michel Foucault no início dos anos 1990

Dinair Andrade da Silva

Em sua Arqueologia do saber, Michel Foucault faz a crítica da historiografia convencional e aponta a direção para uma outra maneira de fazer história, menos presa à concepção de um sujeito transcendental e à concepção de uma grande causa fundamental. Em síntese, menos presa a uma história teoricamente já dada, a cujo modelo o historiador teria apenas de ajustar a sua análise.

Por tentar afastar esse sujeito e essa grande causa, pareceria que Foucault abandona a posição de intelectual “engajado”, tão prezada nos meios acadêmicos. Nada mais ilusório. Nesses dois trabalhos, que remetem a outros do autor, é possível perceber a contradição – antagonismo, talvez – entre indivíduo e sociedade. O que Foucault recusa é abordar essa contradição com uma análise em que a história já esteja previamente construída.

Suas primeiras tentativas nessa direção, A história da loucura, O nascimento da clínica e As palavras e as coisas, formam o cerne de suas reflexões a respeito de sua maneira própria de fazer história, em contraposição à de outros. Avalia o que já fez, submetendo-o à sua própria crítica e incorporando a de outros, e elabora um sistema de análise histórica com um grau elevado de formalização. A esse sistema dá o nome de “Arqueologia”, operando uma reformulação conceitual em que inverte a caminhada semântica de “documento” e “monumento” no que-fazer dos historiadores. “Documento” passa a ser “monumento”. Mas não um monumento que fala uma história previamente construída. Pelo contrário, um monumento que tem que ser analisado à procura do que ele diz efetivamente, em correlação com outros monumentos. Com os elementos extraídos dessa análise, forma-se uma rede interdiscursiva. Correlacionando-se essa rede com elementos não discursivos, obtém-se um manancial de dados para a escrita de uma história. Uma história cujo poder descritivo e explicativo pode até ultrapassar o âmbito em que foi elaborada, mas que não visa a isso nem explícita nem implicitamente. Uma história que poderia mudar com mudanças nos elementos – as positividades – que formam a rede interdiscursiva. Uma história que, procurando aproximar-se das pesquisas empíricas, aponta as limitações das grandes construções, que correm o risco de não passar de puras ficções.

A “arqueologia” construída a partir das pesquisas anteriores é uma arqueologia do “saber”. Foucault aborda a temática comumente examinada pela Epistemologia, História da Ciência e História das Idéias e procura mostrar o grau em que se afasta das análises nelas empregadas. Constrói um sistema de análise em que o conceito de “saber” engloba, extrapolando-os, os conceitos de “disciplina” e de “ciência”. E cria o conceito de “positividade”, colocando-o hierarquicamente abaixo do de “disciplina”. Assim, no domínio do “saber”, um conjunto de práticas discursivas começa a apresentar identidade própria atravessando uma escala de limiares até atingir o nível de ciência. As condições para tal são estabelecidas em A arqueologia do saber.

Nas pesquisas anteriores, com as limitações reconhecidas por ele mesmo, Foucault esquadrinha seus “corpi” à procura das transformações no domínio do saber que acabaram gerando os discursos psiquiátrico, clínico, econômico, biológico e linguístico, a partir de positividades.

Com a montagem feita em A arqueologia do saber, Foucault poderia analisar, com menos falhas, outras formações discursivas e caracterizar com mais precisão outros discursos no campo do saber, a nível de positividade, disciplina ou ciência.

Uma pesquisa anterior à Arqueologia demonstraria, então, todo o poder da máquina conceitual montada por Foucault voltada para a direção do saber.

Essa seria a expectativa corriqueira diante de uma obra como Vigiar e punir, surgida seis anos após a Arqueologia. Uma de uma série que iria introduzir aperfeiçoamentos no esquema original, aumentando paulatinamente seu poder descritivo e explicativo.

Todavia, essa expectativa deixa de ser atendida: Vigiar e punir está dentro de outra “arqueologia”. Não a arqueologia do “saber”, mas a arqueologia do “poder”.

Uma tônica, na análise foucaultiana da Arqueologia, são as relações de poder associadas a uma prática discursiva que vai adquirindo contorno próprio no domínio do saber. O detentor desse discurso, já a nível de positividade, é um detentor de poder. As práticas não discursivas que entram na análise fornecem evidência dessa relação saber-poder, tanto as de natureza institucional quanto as de natureza política e econômica.

Assim, ao invés de testar o pólo saber, na relação saber-poder, aproveitando um sistema de análise então formalmente bem definido, Foucault preferiu abordar o outro pólo, aceitando o desafio que ele mesmo lançou na Arqueologia, ao apontar a possibilidade de outras arqueologias. Lá ele discute três direções: uma voltada para a conduta sexual, outra voltada para a pintura e a outra para o comportamento político.

A direção tomada em Vigiar e punir não coincide com nenhuma delas. Vigiar e punir vai mais longe. Procura esquadrinhar as condições do saber dadas pela prática social de vigiar e punir, ou seja, como algo que estamos acostumados a colocar perto do positivo pode surgir de algo que estamos acostumados a colocar perto do negativo, numa escala de valores positivo-negativo.

Vigiar e punir constitui uma positividade, mas não uma positividade dentro da hierarquia positividade-disciplina-ciência, que é estabelecida a partir de práticas discursivas. É uma positividade estabelecida a partir de práticas não discursivas.

Na Arqueologia, o foco da análise era o domínio discursivo, que se procurava relacionar ao domínio não discursivo. Em Vigiar e punir, o foco da análise é o domínio não discursivo, que se procura associar ao domínio discursivo.

Nessa análise do poder estão presentes os traços que caracterizam a arqueologia foucaultiana. Não entender a história como um contínuo nem como um descontínuo, mas como uma interação entre os dois. Não entender a história como um ritmo único, mas como uma multiplicidade de ritmos. Não entender a história como um já-dado, com uma coerência pré-estabelecida, mas como algo lacunar. Não entender a mudança como um bloco que irrompe na permanência, mas como resultado de transformações. Ao escrever a história, não forçar o documento a repetir uma história elabora de antemão.

Outro traço da arqueologia é sua elasticidade quanto à cronologia, entendida como calendário. Em Vigiar e punir, a concentração da análise é no que Foucault chama de época Clássica, que abrange do século XVI ao XVIII. Isso não impede que avance nas duas direções, remontando ao século XII ou avançando até o século XX. Por sinal, ele faz questão de frisar que os problemas que estuda nascem de preocupações com o presente. Vigiar e punir tem entre suas motivações as rebeliões de que teve notícia em presídios de várias partes do mundo.

Várias práticas discursivas entram na análise arqueológica do poder, como já haviam entrado na análise arqueológica do saber. Tornam-se presentes, portanto, os traços de raridade, dispersão e cumulatividade dos enunciados. No entanto, a rede interdiscursiva que formam não é considerada dentro do sistema próprio da arqueologia do saber, ou seja, descrever seus movimentos na constituição de positividades, disciplinas ou ciências. São enunciados que mostram a generalização da prática de vigiar e punir dentro da sociedade. E que mostram, principalmente, como o vigiar e punir foi dando margem à formação de saber sobre o indivíduo. Um saber disseminado pelo que se convencionou chamar de “ciências humanas”. Um saber que, especificamente, fornece bases para uma criminologia. Mas aqui não se trata de estabelecer o confronto entre as várias positividades surgidas ou beneficiadas com o saber tornado possível pelo vigiar e punir, à procura de simetrias ou assimetrias formais ou tópicas ou à procura de gradações dadas pelos limiares de positividade, epistemologização ou formalização.

Em Vigiar e punir, a análise arqueológica mostra como uma prática social específica forma a base do poder. E como esse poder se exerce sobre o corpo do indivíduo, a nível institucional.

Não se trata do vigiar e punir a nível da instituição menor – a Família, embora se aponte a família entre os segmentos que apelam para a punição de seus membros, notadamente com o encarceramento, solicitado ao detentor do poder de punir. Por sinal, a prática de vigiar e punir a nível de família é apontada por Foucault como uma direção de pesquisa. Aí ele nota a incorporação de enunciados extraídos principalmente da pedagogia, psicologia e psiquiatria, áreas que muito devem às observações propiciadas pelo vigiar e punir.

Trata-se do vigiar e punir a nível da instituição maior, a Sociedade, ou mais propriamente, o Estado. Foucault mostra as transformações da prática de vigiar e punir que culminaram no desmembramento de um dos três poderes convencionais do Estado burguês: o judiciário, dando margem ao poder carcerário.

São precisamente as transformações que mais se destacam na arqueologia do poder, que Foucault denomina de tecnologia política do corpo. Ou melhor, as metamorfoses. O poder carcerário é um exemplo, pois representa exatamente a retomada do arbitrário presente no ponto de partida da análise foucaultiana: o superpoder do príncipe sobre o condenado.

Foucault inicia sua análise cotejando duas situações polares da prática de vigiar e punir. A primeira, a cerimônia de execução pública de um regicida, um retrato formado por elementos extraídos de três práticas discursivas, em que predominam as cores vivas do relato jornalístico. A segunda, o dia-a-dia de um condenado num cárcere, um retrato formado pelo discurso metódico e contido de um regulamento. No calendário, o primeiro momento: 1757; o segundo: 1838. No primeiro momento, o poder de punir exercido publicamente sobre o corpo do condenado, num processo de vingança que não parava com a morte, mas se estendia sobre o corpo morto. Uma manifestação de poder em que os dois antagonistas podiam ser visualizados como pessoas: quem infringia a lei era considerado inimigo pessoal do príncipe e sentia sua vingança pelas mãos do carrasco. No segundo momento, o poder de punir exercido no isolamento do cárcere, num processo de correção que, atuando também sobre o corpo, visava atingir a alma. Uma manifestação de poder em que um dos antagonistas, o que pune, não pode ser visualizado como pessoa: quem infringe a lei agride a sociedade e, se não implica em pena capital, sua punição deve conter elementos corretivos que o reabilitem a viver em sociedade. Em menos de um século, um poder que tripudiava sobre o corpo passa por um processo de transformação em que, numa aparente reverência ao corpo, procura atingir a alma.

A análise termina com a retomada do segundo momento (no calendário: 1838), mas com um retrato que mostra a difusão do poder de punir – o arquipélago carcerário da análise foucaultiana, imagem traçada, como a inicial, pela descrição viva do discurso jornalístico.

A arqueologia foucautiana não é reducionista: é uma análise do “não só mas também” e do “não só mas sobretudo”. Seu poder descritivo e explicativo advém de uma dinâmica que envolve quadros formados por elementos extraídos de várias práticas discursivas e não discursivas. Assim para mostrar as transformações na prática social de vigiar e punir, forma uma rede que integra ao discurso jurídico-penal outros discursos, sobretudo o militar e o pedagógico. Da mesma forma, à rede de práticas não discursivas judiciárias integra práticas militares, médicas, escolares e industriais.

A análise arqueológica depreende desse “corpus” multifacetado o como e o porquê de ter passado para quatro paredes (e com sanção para testemunhas que o divulgassem) um ritual que primava por ser tão visível a ponto de montar um espetáculo e convocar a participação popular. Descreve e explica também como um processo que prolongava ao máximo o sofrimento físico passa a buscar rapidez e minimização da dor através de psicofármacos.

Assume grande força demonstrativa dentro da análise foucaultiana o recurso aos modelos militar e escolar para mostrar a eficácia da disciplina sobre o corpo dentro da prática de vigiar e punir e sua difusão para outros setores, entre os quais os hospitais e as fábricas, para não falar, naturalmente, nas prisões.

Em sua arqueologia do poder, Foucault introduz o conceito de “limiar tecnológico” para mostrar o ponto no processo em que o vigiar e punir maximiza a relação saber-poder: quanto mais saber mais poder, quanto mais poder mais saber.

O significado da prisão, como um lugar privilegiado para a relação saber-poder fica mais claro quando a análise recorre a outro modelo muito expressivo: o da cidade de quarentena por causa de peste. A situação ideal para todos que quisessem exercer vigilância sobre toda uma população, com controle individual diário.

Outro ponto alto da análise empreendida por Foucault é quando mostra o processo de retomada da prisão e sua universalização como penalidade. Algo colocado sob suspeita, por razões muitas vezes antagônicas, e num grau inferior na escala de punições, acaba derrubando em pouco tempo todo o arcabouço punitivo montado para associar analogicamente crime e castigo: a sonhada cidade punitiva.

Um elemento importante para clarear a significado profundo da prisão na relação saber-poder reside no outro tipo de documento incorporado ao “corpus”: os ícones, representados por gravuras, fotografias e plantas arquitetônicas. Esse material clareia também outros pontos da análise arqueológica, pelo poder de síntese que possui. Mas é difícil não se surpreender com o que diz o confronto da gravura do jardim zoológico de Versalhes com as fotos e plantas de prisões inspiradas no panóptico (sistema de construção que permite, desde determinado ponto, avistar todo o interior do edifício) de Bentham.

As justificativas teóricas do Iluminismo, ou seja, a argumentação daqueles que Foucault chama de Ideólogos, faz parte do processo de transformação do vigiar e punir. Só que a arqueologia mostra que a atenuação das penas tem mais a ver com outros elementos do que com uma preocupação humanista. É que essa preocupação está mais voltada à proteção dos possíveis observadores da punição, “as almas sensíveis”, do que à dos próprios punidos.

A análise arqueológica revela tendências contraditórias e às vezes até antagônicas no processo de transformação da prática de vigiar e punir. Um caso é bastante revelador: dois discursos de uma mesma fonte, enunciados em dois momentos distintos. A fonte: Le Trosne. O calendário: 1764 e 1777. Na qualidade de reformador, a tendência seria atacar o absolutismo real, inclusive no tocante ao poder de punir. Todavia, no primeiro momento, defende o exacerbamento desse poder, propondo uma caça aos vadios análoga à feita aos lobos, com recompensa pela captura. No segundo momento, propõe a redução das prerrogativas da parte pública no direito de punir, com salvaguardas para o acusado. O importante nessas duas tendências é apontado pela análise: o poder absoluto do rei só funcionava se fosse dentro de um sistema que tolerasse uma série de ilegalidades. Na formulação original, típica da arqueologia foucaultiana: “de maneira geral as diversas ilegalidades próprias a cada grupo tinham umas com as outras relações que eram ao mesmo tempo de rivalidade, de concorrência, de conflitos de interesse, e de apoio recíproco, de cumplicidade: …” (Vigiar e punir, p. 77.) Dessa forma, embora uma postura (atacar as prerrogativas do soberano) contivesse a outra (atacar as ilegalidades), elas podiam se isolar e se manifestar como no caso citado. No movimento geral descrito pela análise, houve um momento de tolerância do grupo burguês às ilegalidades dos grupos populares seguido de um momento de repressão rigorosa. O que estava em jogo não era o conjunto das ilegalidades, mas dois tipos de ilegalidades: a ilegalidade de direito e a ilegalidade de bens. Com as transformações que começaram a cercar a ilegalidade de direito, fundamental à sobrevivência dos grupos populares, esses se voltaram perigosamente para a ilegalidade de bens. Daí as precauções do grupo burguês. O que se buscava, como mostra a análise, não era deixar de vigiar e punir, mas vigiar e punir mais e melhor.

A análise foucaultiana revela paralelismos surpreendentes. Num deles, aproveita a imagem do corpo duplo do rei feita por Kantorowitz, para mostrar o condenado como a imagem invertida do rei: o mínimo poder diante do máximo poder. Em outro, a extensão ao condenado de algo que era privilégio de reis: a biografia. As transformações operadas no vigiar e punir impunham a necessidade de informações detalhadas sobre o condenado. A nova manifestação do máximo poder precisava saber o antes (os antecedentes variados ligados ao criminoso e ao crime), o durante (a conduta durante a punição com fins corretivos) e o depois (o controle das reincidências).

É nesse ponto que se maximiza a relação saber-poder. Onde havia um elemento entre o condenado e a punição – o carrasco, passou a haver um corpo formado por elementos extrajurídicos: médicos, psiquiatras, psicólogos, criminólogos, educadores, capelães. Os saberes que informam a prática discursiva desses elementos não são integrados ao discurso jurídico-penal. Não há, assim, uma tendência que caberia bem na arqueologia do saber. A arqueologia do poder mostra que a manutenção desse “status” de elementos extrajurídicos faz parte do processo de transformação do vigiar e punir.

Os três momentos biográficos do condenado, informados por elementos jurídicos e extrajurídicos, estão ligados a outra metamorfose revelada pela arqueologia foucaultiana. As ilegalidades não desapareceram como parte integrante do poder de vigiar e punir. Pelo contrário, a prisão tem como correlato a delinquência. São frutos do mesmo processo. Onde se tinha a figura do infrator, tem-se a figura do delinquente. É ilegalidade de pequeno porte, criada e mantida para, entre outras coisas, ajudar no controle de outras ilegalidades. Na formulação original: “A delinquência, com os agentes ocultos que proporciona mas também com a quadriculagem geral que autoriza, constitui em meio de vigilância perpétua da população: um aparelho que permite controlar, através dos próprios delinquentes, todo o campo social”. (Vigiar e punir, p. 247.) E adiante complementa: “Podem falar os magistrados; a justiça penal com todo o seu aparelho de espetáculo é feita para atender à demanda cotidiana de um aparelho de controle meio mergulhado na sombra que visa engrenar uma sobre a outra polícia e delinquência. Os juízes são os empregados, que quase não se rebelam, desse mecanismo. Ajudam na medida de suas possibilidades a constituição da delinquência, ou seja, a diferenciação das ilegalidades, o controle, a colonização e a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante.” (Vigiar e punir, p. 248)

A análise arqueológica de Foucault mostra como a relação prisão-delinquência faz parte do poder de vigiar e punir que se generalizou para todo o campo social. No mesmo processo que uniu a prisão à delinquência entrou um terceiro elemento: a reforma da prisão. A análise mostra que os projetos de reforma são contemporâneos à generalização da prisão como mecanismo punitivo. E que os arrazoados dos reformadores se repetem deste então, sem sair do círculo prisão-delinquência-reforma.

Eis aí outro aspecto importante da abordagem de Foucault à história. Descartando uma história construída de antemão, que reduziria tudo a uma coerência ou a uma causa fundamentais, torna-se possível verificar que algo que pareceria estar fora de um processo, por seus aspectos negativos, como a delinquência, acaba sendo gerado por ele e ajudando a responder por sua permanência.


Referências bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

_______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1989.