Still Life – Vase with Fifteen Sunflowers, Vincent van Gogh, 1888.
Fonte: Wikiart. Acesso em: 31/08/2021.

Meu amigo Vicente Pereira de Souza (1943-2015) escreveu a apresentação do Viajante estrangeiro: cultura e relações internacionais. Auguste de Saint-Hilaire, 1816-1822. O segundo livro que publiquei.

Era avesso à mesmice do mundo acadêmico e aos parâmetros da educação conservadora, reacionária e paralisada aquém das fronteiras do conhecimento.

Estudou na Faculdade de Letras da UFMG e no Programa Unificado de Pós-Graduação em Linguística da UFRJ e Museu Nacional. Em meados da década de 1970, no MIT (USA), teve como orientador Noam Chomsky, celebrado na academia como “o pai da linguística moderna”.

Vicente foi um homem de conhecimento muito amplo e diversificado. Amava os girassóis e o estudo de línguas estrangeiras. Possuía profundo conhecimento do inglês, alemão, francês, italiano, espanhol e árabe.

Abandonou cargos e funções nas altas instâncias acadêmicas e burocráticas da educação para se dedicar, por mais de duas décadas, ao ensino da língua portuguesa numa escola pública da periferia de uma cidade do Distrito Federal. Acreditava que lá seria mais útil na transformação e inclusão daqueles jovens…

O linguista apresenta uma obra de História

Fiquei agradavelmente surpreso quando o Dinair me convidou para fazer a apresentação deste seu trabalho, assim que lhe comuniquei o término da revisão. Afinal, seria um professor de português, especializado em linguística, apresentando uma obra na área de história…

Quando conheci o Dinair, eu era um professor particular de inglês procurando amealhar recursos para custear estudos na área de minha especialização, e história estava muito longe de minhas cogitações. Por sinal, havia sido claramente insatisfatório meu rendimento escolar nesse campo.

Estruturalismo na Linguística e na História: Antônio Americano do Brasil

Havia, porém, um forte traço de união intelectual entre nós: estávamos ambos super interessados nas correntes de pensamento que agitavam o meio acadêmico na época, sobretudo no estruturalismo. E foi um pulo partir de uma aula de inglês para uma tradução informal de textos de história. Um livro aberto, um tópico interessante: a tradução parava e começava uma discussão animada sobre as implicações tanto na história quanto na linguística. Nessas conversas, me comprometi a revisar seu primeiro trabalho de fôlego, ainda sem tema muito definido. Quando me dei conta, já estava devorando os livros do mestre: Febvre, Bloch, Braudel, Sérgio Buarque, entre tantos outros. E não só os do Dinair, mas também os que ele me trazia tomados de empréstimo a seus amigos. E a bronca amigável: “Como é que vou devolver este livro com a lombada neste estado?” (Até hoje ele se arrepia com meu hábito de passar as costas da mão para fazer as páginas ficarem mais abertas. Uma afronta para quem tem um zelo quase religioso com as fontes históricas.)

Assim, quando ele me trouxe para revisão o seu livro sobre Americano do Brasil, eu já me podia considerar bem avançado num curso informal de história, sem correria de horários, sem preocupação com carga horária, sem medo de reprovação, mas não sem testagem. Eu não me sentia sabatinado, mas “O que você achou disso?” “O que você achou daquilo?” punha às claras meus erros e acertos e afiava minha percepção para as peculiaridades do pensamento histórico.

Uma parceria em que a História lucrou

Deve ser bastante incomum num revisor, mas eu compulsava as fontes do seu trabalho procurando entender melhor o que ele queria dizer com determinadas afirmações. Por felicidade, seu tema tratava de um historiador literato, o que me punha à vontade diante de muitos textos, com uma curiosidade especial pelos manuscritos com a ortografia da época. E me sentia à vontade para palpitar, sendo reforçado sempre que o palpite era feliz.

Foi assim que me irmanei com o mestre e acompanhei seus trabalhos desde o nascedouro. Pude perceber, talvez melhor do que ninguém, a profunda identificação que ele tem com os estudos históricos, a disposição com que compulsa e organiza pilhas de material (podem ser medidas a metro) e, sobretudo, a alegria ao encontrar algo que comprova algum ponto de vista ou revela algo insuspeitado.

The Sunflower, Gustav Klimt, 1906-1907. Fonte: Wikiart. Acesso em: 31/08/2021.

Interação entre culturas: o viajante

Depois de Americano do Brasil, foi a vez de Saint-Hilaire. Aqui as fontes eram livros impressos. E o objetivo não era historiar ideias nem seu criador, mas ilustrar um tema de interesse muito mais amplo: examinar, numa perspectiva histórica, a interação entre culturas, privilegiando um agente que a realiza de forma direta e concreta: o viajante. E, também, demonstrar como a área de relações internacionais pode se enriquecer incluindo cada vez mais, ao lado das relações entre Estados e Nações, as variadas formas de manifestação dessas relações, patrocinadas ou não por governos específicos, ou seja, incorporando a abordagem que percebe o Estado ou a Nação como uma instância que pode englobar uma diversidade de nações em interação.

Uma enciclopédia como fonte histórica

Para documentar seu ponto de vista, Dinair se valeu ainda de uma fonte pouco usual – uma enciclopédia, algo visto atualmente com ar de suspeita nos meios acadêmicos, mas que teve seu momento de glória numa época em que o ideal intelectual era resumir, numa só obra, todo o conhecimento existente. Muitas vezes vi o mestre com um lenço molhado no rosto, os olhos ligeiramente irritados sob os óculos, extraindo dados de uma enciclopédia excessivamente impregnada de inseticida. E, depois de muita labuta para categorizar esses dados, computá-los e distribuí-los por tabelas, com uma calculadora em punho. Pôde, então, traçar um quadro amplo para situar o viajante e uma série de variáveis a ele ligadas.

Empatia sem identificação

O vínculo de Dinair com os estudos históricos, ao se expressar nos escritos de maior fôlego, costuma assumir uma relação de empatia com agentes históricos de carne e osso: Americano do Brasil, Martí e nesta obra, Saint-Hilaire. Mas essa empatia não significa identificação, pois o mestre sempre alerta para o risco de se fazer o jogo do outro. Assim, não lhe escapam, por exemplo, o etnocentrismo e o conservadorismo (ou melhor, reacionarismo no contexto da Revolução Francesa) do viajante escolhido para demonstrar sua tese.

Bouquet of Sunflowers, Claude Monet, 1880. Fonte: Wikiart. Acesso em: 31/08/2021.

Saint-Hilaire interage com a sociedade brasileira

Saint-Hilaire constitui uma escolha muito feliz. Num contexto bastante desfavorável aos franceses, em particular, e aos estrangeiros, em geral (como o demonstra o mestre sobretudo em seu quadro sobre a Europa e o Brasil na época), esse sábio conseguiu interagir com os vários segmentos da sociedade brasileira, produzindo conhecimento específico de ciências naturais e tecendo considerações reveladoras sobre o homem e a sociedade. Conhecimento não só sobre o brasileiro, mas também sobre o estrangeiro, como explica o mestre. E cresce a dimensão do cientista francês, quando comparamos os percalços de uma viagem nos nossos dias com as incontáveis dificuldades que ele enfrentou: uma investigação conduzida durante seis anos, incluindo quatro viagens de porte pelo território brasileiro, feitas com tropa de burros e auxiliares mal-humorados, enfrentando secas e enchentes, entre outros obstáculos.

Ao ler esta obra, verificamos como uma abordagem bem-sucedida pode levar ao leitor uma imagem mais definida para temas que lhe parecem, à primeira vista, vagos e fugidios. Essa abordagem vem colocada à disposição no texto e ainda reforçada nos anexos, como uma contribuição não só à área das relações internacionais como a todas que envolvem cultura e história.

Escolhi estas três imagens porque cada uma reflete o olhar de cada pintor – Vicent van Gogh, Gustav Klimt e Claude Monet – sobre os girassóis que o Vicente tanto admirava. Nesta mesma linha de raciocínio, o texto deste post representa três perspectivas sobre uma mesma realidade: o olhar do viajante – Saint-Hilaire, o do autor do livro – Prof. Dinair Andrade da Silva e o do apresentador da obra – Prof. Vicente Pereira de Souza.

Como citar este post: SOUZA, Vicente Pereira de; SILVA, Dinair Andrade da. Um testemunho de uma parceria intelectual. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/um-testemunho-de-uma-parceria-intelectual/. Publicado em: 31/08/2021. Acesso: [informar a data de acesso].