La mala hora - García Márquez

El Frente Nacional. Fonte: Biblioteca Nacional de Colombia. Acesso em: 11/10/2024.

Como foi proposto no exame da primeira parte deste romance, consideramos, para análise, elementos que envolveram a produção de La mala hora e algumas de suas características gerais e técnicas.

Na segunda parte, iremos aprofundar o estudo de alguns aspectos, especialmente considerando a percepção de García Márquez sobre como o tema da violência é trabalhado na literatura colombiana e a possibilidade de examinar La mala hora como fonte histórica.

Traços da arquitetura do romance

Na minha compreensão, o Autor tomou o povoado e fez um corte cronológico do seu cotidiano. Examinou as ações amistosas e animosas dos seus habitantes e as suas interações entre si e com a comunidade. Ressaltou as ligações entre os atores, nos seus relacionamentos íntimos e particulares, privilegiando questões éticas. Explicitou a violência nos seus múltiplos níveis. Desmudou a dor implícita e a dor exposta de maneira plena.

Esta densa e extensa matéria foi distribuída de maneira desproporcional entre 10 capítulos. Cada um dos quais, por sua vez, está constituído por três ou quatro subcapítulos, que apresentam, cada um, diríamos, uma unidade de conteúdo. Cada subcapítulo narra uma pequena história, um episódio, uma circunstância ou alguma coisa qualquer.

A crítica divide em três núcleos o desenvolvimento temático deste romance.

Um segmento do primeiro núcleo reporta ao conto “Um día de éstos”, publicado na coletânea intitulada Los funerales de la Mamá Grande. Posto que não havia outro profissional da área ao seu alcance, o alcaide busca atendimento dentário com seu desafeto político, em decorrência da infecção de um molar.

Na sequência, o teniente imprime uma aparência de legalidade à solução dos episódios relacionados à aparição dos pasquins. Dentre estes fatos, citamos a autópsia no corpo do músico Pastor, assassinado por César Montero. Por outro lado, tanto o médico, incumbido da autópsia, quanto o notário, solicitado a fazer a remoção do cadáver, questionam o alcaide sobre a realização destes procedimentos, tão incomuns nos últimos tempos no povoado.

O segundo núcleo temático do romance está vinculado a um desastre natural. Uma grande inundação das áreas mais baixas do povoado afetou dramaticamente as condições de habitabilidade de alguns bairros. Ocorreu então um significativo deslocamento dos moradores para um setor mais seguro. A posse e propriedade deste setor, por sua vez, foi prontamente reivindicada pelo alcaide, que, por meio de fraude, o alienou ao município auferindo com esta transação uma enorme vantagem indevida.

Mais da metade dos capítulos do romance é dedicada à narração minuciosa das distintas formas de corrupção e de arbítrio praticadas por este administrador local. Este conjunto diversificado de fragmentos de histórias compreende o terceiro núcleo temático deste trabalho do Autor.

A narrativa oferece interessantes e ricos elementos para um diálogo entre a Literatura e a História. Entre estes, vale ressaltar as ameaças (ao contabilista Carmichael, ao juiz Arcadio, ao padre Ángel e ao médico Octavio Giraldo); as modalidades de apropriação indevida (junto aos despossuídos e ao empresário do circo); a apropriação do erário público (nomeando funcionários, como o juiz Arcadio); a tortura e o assassinato (de Pepe Amador detido nas dependências do quartel) e a prática da impunidade (referente ao assassinato do Pastor por César Montero).

Uma análise literária e histórica de La mala hora - Las guerrillas del Llano

Las guerrillas del Llano. Fonte: Biblioteca Nacional de Colombia. Acesso em: 11/10/2024.

La mala hora termina relatando que a trégua precária no âmbito da qual o romance se desenvolveu encerrou. Um novo tempo, marcado por uma violência mais intensa iniciava. “Por todos lados – dijo Mina. Parece que se volvieron locos buscando hojas clandestinas. Dicen que levantaron el entablado de la peluquería, por casualidad, y encontraron armas. La cárcel está llena, pero dicen que los hombres se están echando al monte para meterse en las guerrillas.”

Alterações da linguagem na primeira edição do romance desagradaram o Autor

Vitorioso no Concurso Anual de Literatura da Colômbia, patrocinado pela Esso, o romance teve a sua primeira edição publicada em Madri, em 1962, por Talleres de Gráficas ‘Luís Pérez’. O texto passou por uma revisão, desnecessária, mutiladora e não autorizada pelo Autor, suprimindo o que se considerou erros de estilo. García Márquez repudiou esta edição, preparando outra que foi publicada na Cidade do México, em 1963, acompanhada de uma nota introdutória afirmando a sua intenção estilística.

Numa perspectiva mais geral, acredito que o editor da primeira edição madrilenha interferiu na linguagem do romance em razão, diríamos, de preconceito linguístico. Quis fazer prevalecer o espanhol peninsular e o seu ritmo. Na prática, a sua atitude mutilou a obra de arte construída a partir do léxico e da sonoridade do espanhol falado na costa colombiana do Caribe.

O cotejo comentado das duas primeiras edições, a de Madri e a da Cidade do México, efetuado inicialmente pelo Autor e posteriormente pelos críticos revelou, com toda a clareza, a desfiguração do trabalho.

Há situações inusitadas como a que exponho a seguir: Trinidad, uma paroquiana que prestava serviços ao templo e à casa paroquial “se acercó con la caja de rotones en la mano.” Todavia, o editor peninsular modificou o texto. Afirmou que a personagem “se acercó a la caja de ratones…” Logo, se Trinidad tem a caixa de ratos na mão, ela não se aproxima da caixa, mas, se aproxima com a caixa…

As alterações do aspecto exterior, ou seja, da forma textual originária, manifestam-se por meio de dezenas de detalhes, fortemente rechaçados. Cito um exemplo: em todo o texto, a partícula pronominal “lo” substituída por “le”, usada no espanhol da península (“el alcalde lo miró”, alterado por “el alcalde le miró”).

Além do mais, o editor madrilenho fracionou diversos parágrafos do romance.

No romance, a presença de muitas referências intertextuais

A leitura dos posts anteriores sobre a obra literária de García Márquez – como os romances La hojarasca, El coronel no tiene quien le escriba, e a coletânea de contos intitulada Los funerales de la Mamá Grande – nos permite identificar algumas dezenas de referências intertextuais com o romance La mala hora. Na sequência, darei alguns exemplos.

Neste romance, numa fala com Carmichael, o Alcaide menciona impedir, por meios ilícitos, que Don Sabas viesse a adquirir, como era de seu interesse, bens deixados pelo falecido Don Chepe Montiel. Vamos encontrar Don Sabas, como compadre do personagem central do romance El coronel no tiene quien le escriba.

Mina e Trinidad, jovens amigas, artesãs, frequentadoras assíduas e colaboradoras da paróquia do Padre Ángel em La mala hora, estão presentes, confeccionando flores, como no conto “Rosas artificiales”, que integra a coletânea Los funerales de Mamá Grande.

Nas primeiras páginas do romance, objeto deste post, somos surpreendidos pela presença – ora apavorante, ora mais serena – do alcaide sob efeito de analgésicos, enfrentando durante semanas a infecção de um molar. Então, numa oscilação da balança de poder, a autoridade submete-se à ação do dentista prático [este, no romance, não recebeu nome algum, no conto, chamava-se Aurelio Escovar], seu adversário político, para a extração do dente. Esta trama, com pequenas variações integra o conto “Un día de éstos”, da mencionada coletânea. A seu turno, a leitura do romance La hojarasca, nos revela também a figura da autoridade corrupta e arbitrária do alcaide.

O Padre Antonio Isabel é o personagem de destaque no conto “Un día después del sábado” e, ao mesmo tempo, aparece no conto “Los funerales de la Mamá Grande”, dando a extrema-unção à sua parenta próxima, nonagenária igual a ele. Além disso, deparamos com o Padre Ángel em La mala hora, dizendo que não gostaria de estar dirigindo a sua paróquia com a idade tão avançada, como a do Padre Antonio Isabel, que dirigia a dele. E, em El coronel no tiene quien le escriba, lá está o Padre Ángel controlando a vida social do povoado.

No romance que estamos analisando, a esposa de José Montiel [ou Chepe Montiel] reside solitariamente, numa enorme casa de nove quartos, adquirida por seu marido, onde morreu a Mamá Grande. Por sua vez, a viúva se destaca como a figura principal do conto “La viuda de Montiel”. José é aquele homem ganancioso, abjeto e rico, que não quis comprar a gaiola para pássaros do conto “La prodigiosa tarde de Baltazar”, ambos os contos da aludida coletânea.

Em La mala hora, Aureliano Buendía, destacado coronel do exército colombiano, passou pelo povoado para negociar os termos da capitulação da última guerra civil. Este influente militar está também na trama do romance El coronel no tiene quien le escriba.

A presença de comerciantes estrangeiros é outro exemplo de intertextualidade. O sírio Moisés, proprietário de um bazar nas proximidades do porto em El coronel no tiene quien le escriba, está em La mala hora, convidando o contabilista Carmichael a se assentar em sua loja, até que a chuva estiasse.

Don Roque, lembrado como o proprietário do bar e do salão de bilhar em La mala hora, é o comerciante ardiloso que desdenhou Dámaso, o ladrão inexperiente, que roubou as bolas de bilhar no conto “En este pueblo no hay ladrones”, que se encontra na laureada coletânea de García Márquez, já citada.

O privado e o público em La mala hora

Em La mala hora, o pasquim, o comentário, o folheto, a bisbilhotice, o mexerico, o fuxico são discursos que conectam duas realidades com o mundo jurídico e estatal: de um lado, a realidade da população, em geral; e, do outro, a da vida familiar privada, em particular.

A vida privada, entendida aqui no seu sentido mais biológico, se comunica com o Estado e o mundo jurídico através destes discursos.

Nesta linha de raciocínio, compreende-se que num país em estado de exceção – como o do romance em questão – instituições estatais incidem drasticamente sobre a vida privada das pessoas.

No entanto, a realidade da maioria da população é menos afetada diretamente, posto que estes discursos prendem-se a segmentos socioeconômicos privilegiados da comunidade.

Em suma, a mera fixação de um pasquim na porta de uma residência relatando, por exemplo, um caso de infidelidade do esposo ou da esposa – ainda que o fato seja de domínio público – provoca imediata e exacerbada manifestação da autoridade estatal.

Em outros termos, o privado – a vida familiar – e o público – o Estado sob a égide do arbítrio – se vinculam por meio destes discursos, sempre caluniosos.

A violência na produção literária colombiana

García Márquez teorizou sobre a violência na produção literária colombiana em um breve ensaio intitulado “Dos o tres cosas sobre la novela de la violencia en Colombia”, publicado na Revista Calle, em outubro de 1959. Ao analisar esta produção, sintetizou também o modo como trata a violência nos seus textos.

Prosseguindo, considerou que o inventário das torturas e das mortes – incluindo mulheres violentadas, homens castrados e outras desumanidades – apresentado naqueles romances, obscurecia o seu valor artístico e estético. Para o Autor, o romance deveria privilegiar a ambiência do ódio, do medo, da insegurança, do terror e não os crimes bárbaros por ela ensejados. Em outras palavras, a trama deveria estar alicerçada nos vivos e não nos mortos. A tragédia humana não é unilateral. Envolve pelos menos dois lados.

Considerada esta premissa, La mala hora se afasta um pouco de El coronel no tiene quien le escriba e de alguns contos da coletânea Los funerales de la Mamá Grande. Nestes, a violência foi apenas apontada. Naquele ela foi mais evidente. Nesta perspectiva, em La mala hora o leitor encontrará situações de prisões, torturas, mortes, porte de armas etc. Todavia, García Márquez destaca – não os atos de violência em si – mas o clima de rancor, de aflição, de pânico e de horror.

A violência e a peste em La mala hora

Na realidade, os pasquins apenas revelam uma violência existente, mas fortemente contida. A seu turno, o clima e as suas agressivas oscilações – chuvas incessantes, grandes inundações e calor insuportável – complementam e concretizam este ambiente de horror, uma espécie de consciência coletiva do medo de todas as coisas.

A despeito de ser um romance de natureza nitidamente política, La mala hora enfoca de forma direta, a violência explícita. Todavia, como dissemos, não nos apresenta uma sequência de mortes, de torturas e de outros crimes – o Autor menciona apenas dois personagens mortos (Pastor e Pepe Amador).

A figura do perseguidor é ressaltada claramente. De um lado, o Padre Ángel, detentor do poder eclesiástico. De outro, o alcaide, ou o “teniente”, detentor do poder político. A despeito de suas divergências naturais, ambos compartilham algumas características comuns. Lutam contra pestes – a dos ratos e a dos pasquins. Cada qual – o padre e o alcaide – vê a ambiência do pânico e a violência da maneira que lhe interessa, mas sempre sob o olhar do perseguidor.

Este romance se caracteriza também por reproduzir reiteradamente algumas informações. Por exemplo: uma sequência de pasquins caluniosos denegrindo a vida de pessoas, uma série de panfletos de natureza política fomentando a luta armada. Além destes, a presença constante dos ratos constituindo uma peste.

Estas informações assim reproduzidas simulam a construção de uma violência crescente e contida, que vai se desenhando num ambiente tenso e angustiante, como que escondendo a chegada iminente de alguma coisa muito pior…

Minhas derradeiras reflexões (O romance como fonte histórica)

Aquele que se põe diante de uma obra literária com o objetivo de analisá-la, tem, diante de si, possibilidades infinitas de abordagens. Fiquei muito impressionado diante de La mala hora. O meu interesse ao analisar este romance – sem ignorar o registro dos seus méritos ressaltados pelos literatos em geral – foi compreendê-lo como uma fonte histórica significativa para o estudo da América Latina, principalmente da primeira metade do século XX.

Enfatiza-se que La mala hora não acontece em Macondo – mas este está presente, e ao mesmo tempo alargado ou estendido – como referência em todo o texto. Com maestria, García Márquez deixou a ditadura colombiana escancarada, nua e desmascarada aos olhos de toda a gente. Mais que isso, ressaltou a operosidade e a integridade da oposição ao mencionar, por exemplo, o comportamento do barbeiro, homem da resistência, e do jovem Pepe Amador, que preferiu a morte à delação dos seus companheiros.

Mereceu atenção do Autor a atitude das autoridades interessadas na corrupção. Neste sentido, os diálogos entre o Alcaide e Carmichael, administrador do espólio de Don Chepe Montiel, são significativos, posto que atentatórios à dignidade e tenacidade do contador negro.

O assédio sexual do Padre Ángel para com Trinidad, a paroquiana de olhos negros, que prestava serviços gerais à igreja e à casa paroquial. Num ato de confissão simulado, quase monólogo inquisitorial, foi extorquindo, pouco a pouco, os segredos mais íntimos da sua alma…

García Márquez não negligenciou um só aspecto da vida daquele povoado. Revelou usos, hábitos, culinária, costumes, lazer e múltiplas práticas. Contemplou o social, o econômico, a religiosidade e diversas modalidades de transgressões, de traições e gostos. Registrou a presença do circo, com seus palhaços, trapezistas, domadores e a vida de homens e mulheres nos espetáculos circenses e na vida de cada dia.

Quando se deteve nas descrições das projeções cinematográficas, não deixou de destacar o controle social da Igreja sobre cada um dos filmes que seriam apresentados.

Diversas histórias elaboradas na construção deste romance permaneceram inconclusas. É o caso da proposta que o alcaide fez a Carmichael de se tornarem sócios na aquisição dos bens do espólio de José Montiel, antes que a voracidade de Don Sabas tornasse realidade. Outro exemplo que me ocorre neste momento é o desenrolar do processo criminal do assassinato do jovem músico e compositor Pastor por César Montero, grande fazendeiro, que se enriqueceu com a extração de madeiras.

Sobrepondo-se às práticas e às representações da vida cotidiana, o Autor implementou um relevo especial à política nacional autoritária e de concentração de poder e de renda, projetada sobre aquela comunidade, tão representativa de todas as comunidades espalhadas pela Colômbia e, com certeza, por toda a América Latina daquele tempo.

Uma análise literária e histórica de La mala hora - El General Jefe Supremo

El General Jefe Supremo. Fonte: Biblioteca Nacional de Colombia. Acesso em: 11/10/2024.

Chamo a atenção para a escassez econômica da maior parte da população; para o isolamento intenso, quebrado pela periodicidade de um serviço mais ou menos regular de lanchas que atracavam no pequeno porto; para a corrupção desenfreada das autoridades locais; para crueldade da violência política; para a ausência da justiça social; para a dura presença da decadência e da irrelevância da vida humana; para a solidão e a desesperança.

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Autor: Prof. Dr. Dinair Andrade da Silva

O texto deste post foi elaborado com base no conhecimento adquirido durante os cursos “Leer a Macondo: la obra de Gabriel García Márquez” e “Gabriel García Márquez entre el poder, la historia y el amor” ministrados por um conjunto de especialistas da Universidad de los Andes, com sede em Bogotá, no ano de 2022, e nas referências bibliográficas acima mencionadas.

Como citar este post: SILVA, Dinair Andrade da. Uma análise literária e histórica de La mala hora – Parte 2. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/uma-analise-literaria-e-historica-de-la-mala-hora-parte-2/. Publicado em: 11/10/2024. Acesso: [informar a data de acesso].

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