Vista da baía do Rio de Janeiro das montanhas da Tijuca, Nicolas-Antoine Taunay, cerca de 1820. Fonte: Wikimedia Commons. Acesso em 18/10/22.
O livro do professor Dinair Andrade da Silva, relativo às viagens do naturalista francês Augusto de Saint-Hilaire pelo Brasil entre os anos de 1816-1822, é do maior interesse para os estudiosos do Brasil e, especialmente, para os historiadores.
Um outro olhar
A obra do naturalista francês tem sido estudada por vários historiadores anteriores, porém neste livro a abordagem é diferente e original. O diário de viagem é analisado exaustivamente por partes: desde os aspectos impressionistas e intimistas do cientista até os aspectos técnicos, isto é, observações sobre a agricultura brasileira, mineração, saúde etc. É uma verdadeira introdução à leitura de Saint-Hilaire para leitores pouco habituados com este tipo de documento.
Os documentos dos viajantes pela América nos séculos XVIII e XIX são da maior importância porque eles transmitem informações sobre a história e vida de um país que não se encontram em outras fontes.
Por outro lado, esses documentos constroem a imagem dos estrangeiros sobre o país. Imagens verdadeiras, imagens fantasiosas, imagens mentirosas, imagens dolorosas. É o poder do discurso.
Estrutura da obra
O livro do professor Dinair está dividido em cinco capítulos. O primeiro está dedicado a fundamentar a tese do autor: “o relato de viagem pertence ao quadro das relações culturais internacionais”.
O capítulo segundo é especialmente importante, pois as viagens, todas as viagens do século XIX são tabeladas e organizadas pela nacionalidade do viajante, destino preferido a ser visitado, objetivo da viagem. Esta abordagem é nova e original. Permite um estudo aprofundado dos objetivos e motivos da viagem. Um tema pouquíssimo estudado, não obstante estar na raiz das finalidades do imperialismo político-econômico.
O capítulo terceiro resume o contexto histórico em que se situa o Brasil no momento da visita do naturalista francês.
O capítulo quarto está dedicado ao diário de viagem de Saint-Hilaire. Aqui se transcrevem e discutem trechos desse diário que identificam bem o espírito do viajante. São textos que revelam intimidades, saudades, lembranças da família e do país de origem.
O capítulo quinto explora o diário do ângulo mais técnico: são as observações sobre a agricultura, mineração, pecuária, educação, feitas pelo naturalista no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás.
O estudo está amparado numa rica documentação acerca do botânico francês; numa bibliografia clássica e moderna, e inclui um anexo documental em que se destaca a cartografia das viagens do naturalista pelo país.
As viagens dos europeus pelo mundo, especialmente pela América, foram muito frequentes nos séculos XVIII e XIX. O século da Ilustração conheceu os mundos asiático, africano e americano, por meio das viagens de seus cientistas, biólogos, geógrafos e aventureiros. A informação era tão valiosa como a contida nas cartas dos jesuítas. Nosso autor faz referências à coleção de viagens editadas em 20 volumes por Antoine-François Prévost em 1789: Histoire Générale des Voyages. Esta obra reuniu todas as viagens feitas pelo mundo desde o século XVII e serviu de fundamento para que os pensadores ilustrados escrevessem sobre aquilo que chamavam de “regiões exóticas”. O conde Buffon usou e abusou dessas viagens para escrever sua monumental obra História Natural e Geral.
Século XIX e as viagens científicas
Como o professor Andrade da Silva o assinala, o século XIX talvez tenha sido o século das viagens científicas. Basta lembrar as viagens de Alexandre Humboldt e Charles Darwin pela América.
As viagens tinham o estímulo da expansão da economia capitalista e a necessidade de conhecer as remotas regiões para estabelecer relações comerciais. O capítulo terceiro do livro que comentamos, trata criteriosamente de este tema.
O grande interesse europeu por conhecer América se manifestou também na publicação de almanaques e folhetos que instruíam os viajantes não especializados para fazer observações adequadas sobre as regiões visitadas. Alertava-se para a necessidade de fazer anotações detalhadas sobre o clima, vegetação, cidades, alimentação, política, etc. Entre esses verdadeiros manuais de viagens, destaca-se o impresso na França: Quelques considérations sur l’Amerique. Par um vieux philanthrope, de 1823.
Diários de viagens como fonte histórica
De acordo a estatística elaborada pelo professor Dinair, temos que entre os viajantes do século XIX, só um 8.2% eram cientistas, isto é, 4.8% naturalistas (botânicos, zoólogos, mineralogistas); 1.6% eram geógrafos; 0.9% eram historiadores; 0.9% eram médicos. Os outros eram colonizadores, militares, políticos, religiosos. Quer dizer, indivíduos que não tinham uma profissão definida, mas escreveram diários falando do continente ou do país. Neste caso, podemos citar o livro do viajante francês Arsène Isabelle, contemporâneo de Saint-Hilaire, Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul.
Neste sentido, os conteúdos de um diário de viagem são altamente relativos, e o estudioso tem necessariamente que levar em conta isto para usá-los como uma fonte mais ou menos segura. O próprio Buffon lamentava que nesses diários era difícil separar a verdade da fantasia.
Tratando-se de um naturalista como Saint-Hilaire, seus livros constituem uma fonte de informação séria, na medida que ele era um botânico de reconhecida competência. Mesmo assim, o professor Dinair alerta para ler o diário com espírito crítico.
Resenha publicada originalmente em: Revista Múltipla – Ano XI – vol. 15 – nº 21, dezembro de 2006.
Como citar este post: BRUIT, Héctor Hernan. Augusto Saint-Hilaire Revisitado. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/augusto-saint-hilaire-revisitado/. Publicado em: 05/07/2020. Acesso: [informar a data de acesso].
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