Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – 1971
Harlequin leaning, Pablo Picasso, 1909. Fonte: Wikiart. Acesso em: 20/07/2021.
Licenciado em História
Em 1971, havia perdido a minha condição de acadêmico. Tornei-me professor de História, com todas as prerrogativas que a lei me facultava. Direitos e deveres. Foram quatro anos de preparação para a docência.
De agora em diante, igual ao aluno de autoescola aprovado no exame pelo departamento de trânsito, já não mais teria o instrutor ao meu lado, no banco do carona.
Somente eu, diante do meu trabalho.
Tempo de deixar o trabalho na loja de autopeças
Quando comecei a trabalhar nesta loja de autopeças, eu era um adolescente. O Departamento Nacional do Trabalho, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, de então, emitia a Carteira de Trabalho do Menor.
Por dois períodos, separados por um interregno de treze meses, trabalhei como auxiliar de escritório entre porcas e parafusos. Era uma empresa de porte médio, fundada por volta de 1957, já muito bem consolidada no comércio de autopeças da cidade.
Durante o primeiro período em que lá trabalhei, de 1º de abril de 1963 até 10 de março de 1964, minhas noções sobre a rotina de um escritório eram infinitamente escassas. Eu era um garoto de 17 anos.
Finalmente, deixei aquele trabalho e aproximei-me do Conservatório de Música da UFG, na expectativa de poder concretizar meu sonho de tornar-me um pianista… Recordo-me hoje em dia, do romance O feijão e o sonho de Orígenes Lessa: de um lado, a minha realidade; do outro, o pianista!
Desconcertado, retornei-me, em 1º de maio de 1965, àquele serviço. Ali vivi uma parte dos tempos sombrios da vida política brasileira. No entanto, mesmo um pouco mais amadurecido, por mais que desejasse, não conseguia integrar-me plenamente no trabalho.
Por esta razão, a partir de 1968, não tive mais como manter os dois pés na loja. Um pé, estava no escritório; o outro, na sala de aula. Compartilhei o meu tempo entre duas atividades díspares: as rotinas do escritório e as aulas de um inexperiente professor em formação…
A obtenção da licenciatura em História ensejou a chegada do tempo de deixar o meu trabalho no escritório. No dia 16 de março de 1971, entreguei à gerência da firma o meu pedido de demissão, solicitando, ao mesmo tempo, dispensa do cumprimento do Aviso Prévio, previsto em lei.
A velha Faculdade de Filosofia
Conclui o meu Curso de Graduação em História em dezembro de 1970, realizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Católica de Goiás, à época, para o meu orgulho e o de tantos outros, dirigida pelos jesuítas.
Tempos já distantes! Tempos dos padres jesuítas Luiz Palacin Gómez, José Maria Corrêa, Luiz Tomazzi, José Luís Castañeda; e do padre diocesano José Lanuza, homem igualmente de cabeça arejada…
Tive a felicidade de conviver por algum tempo com a família Palacin, em Madri; e de conhecer os pais do padre Lanuza, no povoado de Alfajarín, na província de Zaragoza, também na Espanha.
Tempos das professoras Gilka Vasconcelos Ferreira de Salles, Maria Augusta Sant’ Anna de Moraes, Dalísia Elizabete Martins Doles, Ana Lúcia da Silva… Tempos dos professores Sérgio Paulo Moreyra, Antônio Teixeira Neto, Joel Pimentel Ulhôa…
Tempos de uma proximidade, tão estreita quanto profícua, com o Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Dupla chance para um egresso
No ano seguinte à minha conclusão do curso, a Faculdade de Filosofia me proporcionou duas experiências que se tornaram decisivas para a minha vida profissional. Experiências verdadeiramente desafiadoras. Inesquecíveis. Benfazejas. Precocemente, fizeram de mim um professor universitário. E era o que eu mais queria na minha vida!
Foi a concretização de um sonho que alimentei desde quando iniciei meu Curso de História, e que me parecia muitíssimo distante a sua concretização. Uma das experiências ocorreu no primeiro semestre letivo; e a outra, no segundo semestre; interrompida quando se colocou diante de mim, a possibilidade de estudar na Espanha.
Convite que tirou meu fôlego
Dezembro de 1970. Véspera da solenidade de formatura – que se restringiu a um ato religioso, seguido da cerimônia da outorga de grau, ambos na Catedral Metropolitana de Goiânia. A professora Maria Augusta, ao falar-me da necessidade de se ausentar de suas atividades docentes no primeiro semestre do ano seguinte, convidou-me a substituí-la na Faculdade.
Embaraçado e assustado, confessei meu despreparo. Ela então tranquilizou-me, dizendo que conversaríamos detalhadamente durante as férias, e que me orientaria em todos os aspectos. Assegurou-me que eu tinha sim, as condições necessárias, e que não poderia deixá-la decepcionada. Disse-me conhecedora da minha capacidade de trabalho.
Passei as minhas férias estudando a História do Império do Brasil. Encontrei-me algumas vezes como a professora. Recebi orientações. Na época combinada, comecei o meu trabalho.
Portrait of Daniel-Henry Kahnweiler, Pablo Picasso, 1910. Fonte: Wikiart. Acesso em: 20/07/2021.
Sozinho, diante da turma
Na manhã do dia 1º de abril de 1971, quinta-feira, às oito horas; estava lá, eu só, diante da turma do 3º ano do Curso de História. A aula se estendeu até às 10 horas. Naquele instante, começava uma longa e densa carreira universitária. Repleta de alegrias e angústias. De sonhos e tropeços. Igual a tudo na vida!
Com serenidade e singeleza de coração desempenhei minhas atribuições com muita seriedade. Creio ter sido um professor por demais rígido. Fiel aos textos acadêmicos mais autorizados. Inflexível no que não se poderia flexibilizar e intransigente, sempre, no que eu não poderia transigir.
Fazia as minhas solicitações com insistência e obstinação. Num crescente constante, queria sempre o melhor dos alunos, pois, eu lhes dava o melhor de mim mesmo. Assim foi, até o último dia, 30 de junho de 1971. Ao final, apresentei à titular da cadeira de História do Brasil, um relatório circunstanciado de minhas atividades.
Harlequinesque personage, Pablo Picasso, 1913. Fonte: Wikiart. Acesso em: 20/07/2021.
Ilustrando um pouco do que fiz
Meu primeiro encontro com a docência universitária! O desenvolvimento do Plano de Ensino, que havia sido proposto pela professora Maria Augusta, no início do semestre letivo, contou com a minha participação a partir do estudo da Unidade II.
Utilizei como técnica de ensino, agregar à cada unidade do planejamento um texto básico, acompanhado de uma bibliografia específica. Este procedimento agradou aos alunos e tornou o estudo mais eficiente e produtivo.
Como ilustração, apresento, a seguir, o modo pelo qual discutimos as unidades II e III.
Unidade II
Para o exame desta unidade, preparei um Roteiro de Estudo com base no texto de José Ribeiro Júnior, intitulado “O Brasil Monárquico em face das Repúblicas Americanas”, que integra a coletânea Brasil em perspectiva, organizada por Carlos Guilherme Mota, à época muito valorizada.
Meu roteiro estava dividido em três partes: a primeira e a segunda, referentes ao trabalho individual, elaborado uma parte em classe, e a outra em casa; e, posteriormente, a terceira parte, uma discussão em grupo, na sala de aula.
Unidade III
No estudo do Primeiro Reinado e Período Regencial, utilizei outra técnica de trabalho. Escolhi um texto de Nelson Werneck Sodré, para que os alunos fizessem uma análise circunstanciada dele. Trata-se do capítulo intitulado “O avanço liberal”, que integra o livro As Razões da Independência.
Justificada pela dificuldade de aquisição da obra, a secretaria da Faculdade mimeografou o texto para ser distribuído aos alunos. A máquina de escrever e o mimeógrafo eram, à época, os meios utilizados para a duplicação do material didático.
A estrutura do Roteiro estava constituída por duas partes: Na primeira, intitulada “Explicação”, foram explicitadas as coordenadas de como explorar o texto. Na segunda, que tinha como título “Levantamento de Problemas”, propus sete tópicos para reflexão. Por meio dos quais, os estudantes deveriam elaborar, individualmente, um texto escrito.
Sobre as avaliações da aprendizagem
Durante esta minha experiência, apliquei aos estudantes três verificações formais de aprendizagem.
As questões formuladas foram variadas. Questões abertas, tipo ensaio. Análise de proposições. Crítica de fragmento de texto documental. A partir de um texto sobre a transição do ciclo do açúcar para o do café, solicitei: exponha, compare e conclua. Na apresentação de quatro alternativas verdadeiras sobre um tema, solicitei: justificar a melhor resposta. Propondo uma afirmação breve, solicitei: caracterize o problema, explicando as razões de sua ocorrência e a sua contextualização.
Olhares cruzados
Compreendi e deixei registrada no Relatório, a minha percepção sobre a competência técnica da turma. No decorrer do semestre, alguns valores foram sendo revelados. Ao final, discutimos, os alunos e eu, sobre estas questões e fizemos uma avaliação conjunta do curso e da atuação do professor.
Um agradecimento
No Relatório, deixei meu agradecimento à professora Maria Augusta pela oportunidade de me foi dada, pela incondicional confiança que me dispensou, com convite tão honroso quanto desafiador; e, ao mesmo tempo, enfatizei a importância enorme da experiência para minha vida profissional.
A outra chance veio sob a forma de provocação
Pouco antes de concluir o primeiro semestre letivo de 1971, a professora Gilka Vasconcelos Ferreira de Salles, que tanto me estimulou a percorrer os caminhos alucinantes da História da América, me fez um convite provocador. Irrecusável. Instigante.
Com suas costumeiras atitudes propositivas, a professora convidou-me a lecionar História de Goiás, para o 4º ano. Disciplina ministrada em apenas um semestre. No ano anterior, ela ministrou esta disciplina para minha turma.
Les echecs, Pablo Picasso, 1911. Fonte: Wikiart. Acesso em: 20/07/2021.
Dada a inexistência de material bibliográfico atualizado, ela elaborou uma interessante síntese da evolução histórica da sociedade goiana. E continuava pesquisando o assunto, com o objetivo de concluir sua tese de doutoramento junto à USP.
Nova situação desafiadora
Mais uma vez, me vi diante de uma situação embaraçosa! Mas, eu havia decidido a enfrentar todas as dificuldades. Eu queria ser professor universitário. Nada mais. Foi a minha escolha. Não poderia retroceder. Se recusasse o convite, dificilmente teria outra oportunidade, tão generosamente posta diante de mim.
Aceitei o que me foi proposto. Em seguida, comecei a me preparar. Refleti longas horas, buscando clarear as minhas ideias de como elaborar um curso interessante e inovador. Um curso que oferecesse alguma contribuição efetiva para a construção da história goiana.
O que propus aos estudantes?
Meu primeiro pensamento possuía uma direção clara. Os alunos não poderiam deixar a Faculdade sem uma noção satisfatória da história da sociedade goiana. Para tanto, eu poderia contar com a utilização da síntese produzida pela professora Gilka. No entanto, ao dar asas à minha imaginação, deveria avançar um pouco mais.
Propus à turma um projeto audacioso para o curso. Além de uma avaliação e discussão dos temas contidos na síntese referida, faríamos um “Levantamento das Fontes Históricas da Cidade de Goiânia”.
Em resumo, o curso seria constituído por duas partes. Uma teórica, associada a outra, de natureza prática. Teríamos à nossa disposição o tempo previsto na grade horária da Faculdade, e as tardes para a realização da pesquisa de campo. Felizmente, a turma dispunha das tardes para os estudos.
Explicitado o projeto de curso detalhadamente, os formandos foram unânimes em se colocarem de acordo com a ideia. Ficaram verdadeiramente entusiasmados e ávidos por começar. Eu havia recebido a aprovação da Direção da Faculdade, num entendimento prévio que tivemos. Todos estavam ansiosos para colocar a experiência em prática.
A glass, Pablo Picasso, 1911. Fonte: Wikiart. Acesso em: 20/07/2021.
Mãos à massa!
A preparação técnica dos alunos, a elaboração de fichas e sua duplicação, as providências institucionais devidas, não foram obstáculos difíceis de transpor, posto que havia minha experiência recente no envolvimento com levantamento de fontes primárias.
Elaborei levantamentos de fontes das cidades de Porto Nacional e Luziânia. A primeira, cidade no atual Estado do Tocantins; e, a segunda, cidade do Estado de Goiás. Os dois trabalhos deles decorrentes, foram apresentados no VI Simpósio Nacional da ANPUH, realizado em julho de 1971, em Goiânia, e publicados nos respectivos Anais.
Entre as providências institucionais necessárias, oficiei ao Corregedor Geral de Justiça do Estado de Goiás, Dr. Celso Fleury, solicitando permissão para termos livre acesso aos Cartórios da Capital. Era imprescindível efetuarmos em cada um deles, o pertinente levantamento das fontes primárias, manuseando livros e outros documentos.
O magistrado prontamente atendeu o meu pleito, apresentando-me a mim e a minha equipe aos Oficiais, Escrivães e Tabeliães da Comarca de Goiânia. As portas dos Cartórios então nos foram abertas.
Todas as etapas do curso estavam em andamento. No horário das aulas, as discussões sobre aspectos da História de Goiás. Durante as tardes, a pesquisa de campo avançava. Nosso cronograma, em plena vantagem quanto ao tempo, nos dava a segurança de que o trabalho fluía em rota positiva.
O inesperado é uma constante na minha vida
No entanto, de forma abrupta, minha trajetória de vida impediu-me levar adiante aquele projeto. No início do mês de setembro, recebi um comunicado do Instituto de Cultura Hispânica de Madri, de que eu havia sido contemplado, por concurso de mérito, com uma Bolsa do governo espanhol para realizar estudos pós-graduados na minha espacialidade, na Espanha.
Em acordo com a Direção da Faculdade de Filosofia, convidamos Ana Maria Ribeiro, jovem professora, interessada nos estudos históricos goianos, a assumir o trabalho que eu começara. Logo ela se inteirou de toda a metodologia. Entreguei-lhe todo o material reunido até então. E enquanto eu iniciava meus estudos na Espanha, o curso de História de Goiás avançava. De longe, acompanhei o prosseguimento e a conclusão do projeto, encerrado como pleno êxito.
As imagens artísticas utilizadas para ilustrar este post foram produzidas por Pablo Picasso, pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo espanhol. Nasceu em Málaga, em 1881 e faleceu em Mougins, em 1973. Foi um dos criadores do Movimento Cubista. Viveu na França a maior parte da sua vida. Suas conquistas artísticas revolucionárias lhe deram enorme fortuna e renome internacional.
Este é o sétimo post de uma série de registros de minhas lembranças dos meus primeiros encontros com a docência que ocorreram entre os anos de 1968 e 1971, em Goiânia.
Como citar este post: SILVA, Dinair Andrade da. Soou a sirene… As aulas vão começar! Lembrança 7 – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – 1971. In: Histórias das Américas. Disponível em: https://historiasdasamericas.com/soou-a-sirene-as-aulas-vao-comecar-lembranca-7/. Publicado em: 20/07/2021. Acesso: [informar a data de acesso].
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